Diário do Alentejo

Invisíveis: revolta

06 de março 2024 - 08:00
Traumas, ruturas, falhas e recomeços. D. vive na angústia de conseguir livrar-se da sina que lhe calhou em pequena

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Trazemos, hoje, a história de D. 

 

Texto  Ana Filipa Sousa de Sousa

Fotos Ricardo Zambujo

 

De corpo franzino diz, com um sorriso no rosto e enquanto se acostuma à cadeira, ser inquieta por natureza. Avisa, atempadamente, que os espaços fechados não são a sua “praia”, mas que promete que tentará portar-se bem, mesmo que sinta as paredes a engoli-la aos poucos “ali no meio”.

Sabe, e verbaliza em jeito de justificação, que a sua personalidade explosiva e a maioria das suas atitudes rebeldes são fruto das circunstâncias da vida – traumas, ruturas, começos, falhas e recomeços.

Embora conheça os seus limites, nem sempre se conhece. Apega-se a tudo o que é momentâneo e não olha para o futuro, sobretudo, porque este já a traiu inúmeras vezes. É nesta adrenalina vertiginosa que repete ciclos e se fragmenta uma e outra vez. Espera ser feliz, mesmo sabendo que a felicidade lhe teima em escorregar por entre os dedos.

As marcas da inocência Ainda que seja “muito dona do seu nariz”, D., do cimo dos seus 29 anos, prefere esconder parte da sua identidade. Conta, com o mesmo sorriso rasgado, que a sua infância começou por ser “boa” na pequena vila de Porches, no concelho de Lagoa, no Algarve, de onde a sua família adotiva é natural. Recorda a forte ligação que tinha com os avós maternos, em que a avó lhe fazia “sempre as vontades todas” e o avô lhe dizia que ela “era a neta preferida”.

“Fui muito mimada. A minha mãe [adotiva] metia-me de castigo e os meus avós iam lá e tiravam-me, é sempre assim, os pais ensinam e os avós estragam”, graceja.

Porém, a vida começou desde cedo a pregar-lhe partidas e a colocá-la à prova. As cores de uma infância feliz depressa deram lugar a nuvens cinzentas. Se fora de casa, na escola e no bairro onde vivia, as situações de bullying eram recorrentes, dentro de quatro paredes o cenário só piorava. Primeiro os episódios de violência doméstica entre os pais adotivos e, mais tarde, com oito anos, a descoberta, por parte da mãe, que o pai a abusava sexualmente.

“A minha infância foi cheia de traumas, muitos traumas, e este é um deles, mas é uma coisa de que não falo com frequência”. Respira fundo. “Tenho pesadelos e fantasmas que me perseguem e que hoje tento gerir, sei que não vou conseguir esquecer alguns, mas tento”.

Estilhaçada em quase todos os aspetos, a entrada na adolescência não ajudou. O temperamento insubordinado foi ficando cada vez mais notório e os conflitos passaram a ser constantes. A escola foi ficando em segundo plano e “depois do 8.º [ano] para a frente a cabeça já não deu mais”. “Fui para um curso que era uma coisa mais profissional e um bocadinho mais calma para a minha cabeça e estava prestes a completar o 12.º quando, aos 17 anos, saí da escola e fui ajudar a minha mãe”, explica.

O tempo em que trabalhou com a progenitora, como doméstica em casas particulares, não durou muito. Ao “DA” conta que se portou “mal”, mas que este “é [outro] assunto delicado” de que não quer falar. “Aprendi a lição e nunca mais fiz essas coisas, percebi que fazer asneiras só por fazer não vale a pena”.

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

O turbilhão

Quatro anos mais tarde, aos 20, decidiu mudar-se para Odemira. Grávida de cinco meses, de um anterior relacionamento, conheceu um homem 10 anos mais velho e apaixonou-se.

“No início era uma coisinha, era tudo muito bonito e cheio de rosas, mas depois começou a bater-me. Ele era esquizofrénico e eu também era cuidadora/tutora dele, o que, para mim, era uma responsabilidade muito grande.

Correu mal, chegou a bater-me enquanto estava grávida e depois de ter tido a minha filha... Foi complicado”, explica.

De olhos postos no chão revela que o medo se foi apoderando de si. Rapidamente os “fantasmas” que a perseguiam voltaram a ganhar corpo, principalmente, porque naquele momento teria de se proteger a si e à filha.

“Quando me juntei com ele fui uma mulher, [estava] muito desesperada e disse-lhe que o filho não era dele, estava [grávida] de cinco meses, por isso era impossível.

Mas sempre tive medo do que é que ele poderia fazer sabendo que a criança não era dele, porque há homens que ora aceitam, ora não aceitam, ou então dizem que aceitam e depois fazem-nos a vida num inferno, e ele fez-me a vida num inferno”, revive.

Na cabeça de D. passam em loop um e outro momento.

De repente, e enquanto organiza o pensamento, fica em silêncio. Espera a introdução de um novo tema sobre a sua história, na tentativa de escapar à sua mais recente ferida.

Dói-lhe falar. Ao respirar fundo ganha coragem para continuar e refere que um ano após o nascimento “sofrido” da filha optou por entregá-la à sua mãe adotiva, para que cuidasse dela. Desde então deixaram de ter contacto.

“[O deixar de ver a minha filha] não foi por opção, foi pelas circunstâncias em que vivia, ora porque não tinha dinheiro, ou porque na altura quando estava em Odemira era longe e não tinha dinheiro para ir e para voltar de autocarro e não tinha quem me ajudasse. Nós precisamos sempre de outras pessoas, e eu não tinha”, justifica.

D. sentia que o ambiente em que vivia estava a desmoronar-se e, a qualquer instante, acabaria por perder-se completamente. E assim aconteceu.

“Passei a viver no carro [do meu namorado], porque os meus sogros não gostavam de mim e não me aceitavam em casa. Sentia-me mal, não dava para nada. Depois, quando deixei de trabalhar na empresa onde estava, fiquei sem rendimentos e aí foi ainda pior”, afirma.

D. perdeu a noção do tempo em que pernoitou no carro. Segundo os vizinhos, a situação durou “cerca de dois a três meses” e mesmo com o apoio dos amigos que a incentivavam a deixar aquela relação diz que foi “orgulhosa” e “não queria porque gostava dele”.

“Estive com ele oito anos e sei o que isso é muito bem. Não são oito meses, nem oito semanas, nem oito dias, nem oito segundos, é uma vida. Quando o amor é cego, é tudo bonito, mas se eu soubesse... Havia pessoas que me diziam que eu era humilhada todos os dias, que ele não ia a um café comigo, [mas] pagava ‘rodadas’ [de cerveja] aos amigos e a mim nem um copo de água”, elucida.

É neste momento que surge a dúvida do porquê de não regressar para Porches e recomeçar uma nova etapa junto da sua família. D. não mente, diz que ponderou a hipótese “várias vezes”, mas que “sempre que ia para o fazer desistia”.

“Não valia a pena, eu e o meu padrasto temos um feitio que choca muito e não dava.

Somos cão e gato e regressar para junto da minha mãe ia trazer-me muitos traumas, embora tenha a minha filha lá e me custe”, diz.

Por causa de umas feridas na sola dos pés D. começou a ser acompanhada no Centro de Saúde de Odemira e foi de lá que partiu a iniciativa de contactar a linha de emergência social.

Em junho do ano passado foi-lhe proposto que integrasse o Centro de Alojamento de Emergência Social (CAES) da Cáritas Diocesana de Beja.

“Quando recebi a notícia [de que teria de ir para Beja] disse logo que ia, ainda que estivesse na dúvida porque gostava dele, mas era difícil continuar [naquela relação] ”, justifica.

“É uma vida a moer, a moer, a moer, a desfazer e sem se ver construir nada.

E isto é um bocadinho o momento em que a D. está, ainda não consegue ver um projeto de vida a desenhar-se e não consegue organizar a sua história anterior.

Cristina Taquelim

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

Encarar a dureza da sua história

Pouco tempo após ingressar no CAES, D. foi uma das pessoas propostas para integrar também os laboratórios artísticos da cooperativa cultural Chão Nosso.

Ao início, segundo Cristina Taquelim, uma das mediadoras, na área da narração e da escrita, “foi das pessoas que mais demorou a entregar-se”, mostrando “um distanciamento” e uma desconfiança “em relação às propostas e ao projeto” e “absolutamente compreensível de uma mulher que só tem direito a desconfiar desde pequenina”.

“Mas não se manteve sempre assim, foi abrindo, e à medida que a sua vida afetiva [com um dos utentes do CAES] se foi resolvendo no exterior, o trabalho e a entrega dela no laboratório também foram melhorando.

Lentamente foi-se ultrapassando, foi começando a ver sentido, a ver que as pessoas estavam com as histórias partilhadas e comuns, que estavam a superar as dificuldades, estavam a pôr-se em causa, a desafiarem-se e isso também lhe criou uma base de confiança para ela o poder fazer connosco”, refere.

De entre os trabalhos expostos, D. concretizou dois. Além de uma peça sobre a “mentira”, levou a cabo o seu autorretrato e a frase que o acompanha – “Na rua não há destino, só há caminho” –, o que, para Cristina Taquelim, demonstra “claramente” a forma como “ela se sente fragmentada, com pedaços de tudo o que viveu sem estarem integrados” e sem perspetiva de futuro.

“A história da D. é dura, tem contornos rocambolescos, nos quais ela se enreda em absoluto. Se houvesse uma palavra para falar dela seria ‘revolta’, [porque] ela é uma mulher que ainda não se reorganizou internamente, aliás, o autorretrato que faz é um exemplo muito claro de uma pessoa fragmentada, com pedaços, ruturas, cortes e muito dividida entre a verdade e a mentira. Aquele autorretrato que a D. faz diz tudo, quem a conhece sabe que estes trabalhos não surgem por acaso, surgem porque está com perguntas, com questões, com ansiedades, com interrogações dentro de si e este contexto artístico e criativo ajuda a emergir e a dar forma”, revela.

Do grupo dos 10 participantes, D. foi a mulher que experienciou, durante mais tempo, o sentimento de “estar na rua”. Ao “DA”, tendo em conta o seu ceticismo característico, pouco ou nada falou sobre o assunto, mas durante os três laboratórios – “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração”, “Click – Narrativas Visuais” e “Insilenciáveis – Narrativas de Memória” – foi deixando transparecer que “se a rua é difícil para um homem, é muito mais difícil para uma mulher”. “Ela tem uma experiência da rua [relacionada] com o abuso, a agressão e o medo.

E há coisas que nós não pensamos, [por exemplo], como é que uma mulher que vive na rua faz a sua higiene íntima quando está menstruada? Nós não pensamos nisso, não pensamos que, para além das outras coisas todas, [existem] mais estes aspetos e foi ela que numa das conversas chamou a atenção para isso, [o facto de] ir a um café e pedir para usar a casa de banho nessas alturas”, explica a mediadora. E acrescenta: “E isto são coisas que vão fragmentando o que há de positivo que estas pessoas têm dentro, é uma vida a moer, a moer, a moer, a desfazer e sem se ver construir nada. E isto é um bocadinho o momento em que a D. está, ainda não consegue ver um projeto de vida a desenhar-se e não consegue organizar a sua história anterior.

E estamos neste impasse”.

A psicóloga de formação recorda ainda um episódio marcante que viveu com D. no banco de jardim da Santa Casa da Misericórdia de Beja, local onde decorriam os ateliês, em que a jovem lhe disse algo “que não estava à espera” e que lhe “ficou na cabeça”. “Disse que não sabia onde parava o sangue dela.

A minha pergunta é como é que uma expressão tão forte sai da boca de uma miúda que tem tanta dificuldade de expressão?”. Cristina Taquelim percebeu, mais uma vez, que D. vive constantemente com “dor” e que “anda à procura de si pelas ruas mais escuras”, porque desconhece a sua família biológica, vive com o trauma dos abusos sexuais e físicos e angustiada por estar longe da filha.

Para a mediadora, ainda que os laboratórios artísticos sejam uma “ferramenta” de “corresponsabilização” em que é possível ver aparecer novos comportamentos e formas de encarar aspetos da vida, é preciso, simultaneamente, que haja “um trabalho terapêutico que não é feito nestes grupos”, uma vez que, “se a pessoa está deprimida toma-se um medicamento, se a pessoa está agressiva ou psicótica faz uma medicação, mas um trabalho psicoterapêutico regular sobre as questões dos afetos e das personalidades o Estado português não consegue dar resposta e, obviamente, quem dá esta resposta pelo Estado não tem recursos para ter um técnico a trabalhar diariamente com pessoas como a D., que precisam mais do que uma psicoterapia uma vez por mês ou de dois em dois meses quando o hospital chama”.

Ainda assim, Cristina Taquelim salienta que é preciso continuar a investir em todas estas pessoas para que deixem de continuar dependentes de assistência e conseguiam, efetivamente, “ganhar outros hábitos, outras formas de olhar para o universo do trabalho, para si, para a sua história e para as suas prioridades”, conquistando a sua autonomia.

“Pensarmos que com este vazio da infância, comum a praticamente todos eles, e estas vidas fragmentadas, como é que esta gente sobreviveu até à vida adulta?”, questiona.

Para a jovem, os meses em que esteve envolvida com o projeto da cooperativa Chão Nosso foram uma surpresa “boa”, em que percebeu que, ainda que a vida teime em ser dura com ela, é possível reerguer-se.

“Eu não acreditava na minha capacidade de fazer alguma coisa, mas surpreendi-me a mim própria. Achava que não tinha valor, mas no fim correu bem e aprendi a controlar as minhas emoções. Não é fácil, é um processo doloroso. Já caí tantas vezes, mas levantei-me sempre e sei que voltarei a cair, porque, a errar ou não, estamos sempre a aprender”, assegura D.

“Não é fácil, é um processo doloroso.

Já caí tantas vezes, mas levantei-me sempre e sei que voltarei a cair, porque, a errar ou não, estamos sempre a aprender”. D.

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

O futuro

 

Com a chegada do novo ano, D. estava com o seu tempo no CAES “a terminar” e “junto dos seus contactos pessoais”, nomeadamente, da relação amorosa que desenvolveu com um utente da instituição, durante os seis meses em que esteve ao abrigo da Cáritas de Beja, “conseguiu arranjar uma habitação alternativa” em Moura.

“Agora é diferente. Ganhei amor-próprio, estou com o H. e agora estou bem, damos apoio um ao outro, sinto quando ele não está bem, [resumindo] eu sou o pilar dele e ele é o meu.

Ainda não estou a trabalhar, mas estou à espera de uma resposta de uma empresa e depois de ter este trabalhinho [quero] ter uma casa. Acho que as coisas estão a voltar aos eixos, a compor-se”, revela.

Em jeito de encerramento deste capítulo, a psicóloga do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas de Beja, Inês Jacinto, confirma que o processo de D. dentro da instituição “foi de avanços e recuos”, uma vez que “quando há intervenções deste tipo [os percursos] nunca são só de avanços, porque eles estão numa situação complicada de rua e chegam com marcas, vêm destruturados e têm dificuldade em mudar do dia para a noite os hábitos que adquiriram na rua”. Apesar disso, a técnica realça que “este processo foi muito positivo”.

“Tentamos trabalhar com ela também a exploração de outras áreas de interesse e de a incentivar a experimentar algumas coisas que, habitualmente, podia não ter a motivação para ou, eventualmente, não saberia que poderia fazer um trabalho de qualidade nesse aspeto. Através deste trabalho todo, seja individualizado ou em grupo, é que fomos aqui limando algumas arestas”, aponta.

Tendo em conta a participação nos laboratórios, Inês Jacinto garante que o feedback, no caso da D., “foi muito bom”, dado que “ela acabou por perceber que, independentemente, da situação em que se esteja, é possível fazer algo novo, que tem sempre alguma coisa a ensinar e não só a aprender”.

“Neste sentido, foi um boost de confiança que ela teve aqui [no CAES] e que a ajudou no processo dela e que a partir daqui foi possível trabalhar outras questões e tentar autonomizar-se. De qualquer das formas, a D. também sabe que se precisar da equipa pode recorrer seja para o que for, ou seja, eles autonomizam-se ou fazem tentativas de se autonomizar, mas nunca ficam completamente sozinhos, a equipa tenta sempre que exista aqui um acompanhamento pós-autonomização, caso eles necessitem desse apoio. Uma espécie de apoio continuado após a intervenção”, refere.

Comentários