Diário do Alentejo

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14 de abril 2024 - 12:00
Número de utentes em tratamento no distrito de Beja aproxima-se dos valores pré-pandemiaIlustração| Susa Monteiro

Segundo o “Relatório anual de 2022 – A situação do País em matéria de drogas e toxicodependências”, o distrito de Beja continua a apresentar a segunda taxa mais alta de utentes em tratamento por habitantes de 15- -64 anos, sendo só ultrapassado por Faro. A justificação poderá estar “no isolamento social” e “na falta de ocupação tanto laboral como de lazer”. Ainda de acordo com o mesmo documento, em 2022 estiveram em tratamento, no distrito, 487 utentes, mais cinco do que em 2021 e mais sete do que em 2020. Destes, 49 iniciaram tratamento nesse ano e 35 foram readmitidos. R. e H., dois utentes em programas de tratamento de substituição opiácea, aceitaram dar o seu testemunho.

 

Texto Nélia Pedrosa Ilustração Susa Monteiro

 

Durante “dois anos e tal” a rua foi a casa de R.. Dormia no antigo bairro do Casal Ventoso, em Lisboa, “em cima de um papelão ou onde quer que calhasse, em casas velhas”. Comia “naquelas carrinhas de apoio [às pessoas em situação de sem-abrigo] no Martim Moniz”. Para sustentar o vício estacionava carros na capital. “Foi o pior a que já cheguei por causa da heroína”, admite ao “Diário do Alentejo”.

O primeiro contacto com substâncias ilícitas deu-se ainda na adolescência, por volta dos “17, 18 anos”, com as ditas drogas “leves”, no seio do grupo de amigos, “só para experimentar”. Vivia então no Monte da Caparica, em Almada, com a avó, “numa altura [anos Oitenta] em que se começou a vender e a consumir no Casal [Ventoso] e em que ninguém sabia bem o que era a droga, e, principalmente, as mais ‘duras’”, recorda. Aos 27, 28 anos iniciou-se na heroína. Uma vez mais através do círculo de amigos. “Um ou outro trazia para experimentar e pronto, chega-se a um ponto que…”.

R. trabalhava como segurança. O dinheiro, diz, nunca foi problema. Também consumiu cocaína, “mas pouco”. “Nunca fui muito adepto. A heroína é que foi mais a minha desgraça”.

O ponto de viragem deu-se quando a mãe o foi buscar à rua. Desde então, não consegue precisar bem o ano, mas terá sido seguramente há mais de uma década, vive numa pequena vila do distrito de Beja de onde são naturais os pais. Foi também por essa altura que deu os primeiros passos para tratar o seu problema de adição, no então Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) de Beja, hoje Centro de Respostas Integradas (CRI) do Baixo Alentejo.

Depois de alguns períodos em tratamento, e de outros tantos de recaídas – “às vezes eram seis meses ou sete, dependia” –, mantém-se há “dois ou três anos” num programa de tratamento de substituição opiácea com metadona, destinado à dependência de heroína.

Prestes a completar 60 anos, diz que a idade “já vai sendo outra” e o facto de trabalhar e de continuar a ter o apoio da família também o ajuda a não pensar em consumir.

Ao CRI do Baixo Alentejo já só se desloca de 15 em 15 dias para levantar a medicação, e é porque “não dá para levar para o mês inteiro”. Continua também com as sessões mensais de psicoterapia.

Se não fosse a metadona, ou outra substância similar, acredita que “continuaria agarrado à heroína, isso é matemático”. “Se não houvesse metadona, ou outra coisa, era impossível. A heroína destrói o organismo todo a uma pessoa, descontrola tudo, totalmente. Quando não há, não se come, não se dorme, nada”.

H. era pouco mais novo do que R. quanto teve a sua primeira experiência com haxixe. Teria uns “15, 16 anos”. Começou, conta, “como quase todos, pelas drogas ‘leves’, pelo álcool”. Daí a passar “para as drogas duras foi um passo” e, a “ficar dependente, um ‘ai’”. Aos 18 anos já consumia heroína diariamente. O dinheiro também nunca foi problema. Desde os 16, quando desistiu dos estudos no 10.º ano porque ansiava pela sua independência, que “ganhava bom dinheiro nas obras e no campo”. E poucos anos depois, em 2004, quando ingressou na empresa onde ainda hoje trabalha, “também começou a ganhar bem”.

“No meu caso [o ter começado a consumir] foi em grande parte devido às companhias e achar que aquilo era uma vida boa, uma vida porreira e tal. Mentira! O meu pai também tinha consumos de droga e também era pouco presente. Eu vivia com os meus pais mas praticamente sozinho. Vivia no meu mundo, nas minhas coisas, e comecei a sair muito cedo, com 14, 15 anos, isto nos anos Noventa. Não havia muito controlo e então saía sempre com pessoas mais velhas”. Mas, sublinha, não quer com isto dizer que atribui culpas a terceiros, muito pelo contrário. “O problema foi meu, a escolha foi minha”, reforça.

O consumo de heroína manteve-se até perto dos 30 anos, sem que “durante muito tempo ninguém tivesse desconfiado de nada”. Nunca faltou ao trabalho, “mesmo consumindo”, até porque era “a única maneira” de conseguir levar a vida que bem entendesse. Percebeu, no entanto, que precisava de parar quando começou a “mexer em dinheiros que deviam” pertencer à família e a vender “ferramentas, motas, coisas que tinham custado a comprar”. “Eu queria dar o máximo de conforto à minha família, sempre foi esse o meu objetivo, e estava a tirar esse conforto para alimentar um vício”. Também estava a ficar cada vez “mais magro” e a ter “atitudes que, às vezes, não combinavam” com o seu feitio. A agora ex-mulher, que já “desconfiava, devido às saídas e às companhias”, acabou por confrontá-lo. Foi aí que decidiu pedir ajuda. Os pais e os sogros só souberam da adição anos mais tarde. O seu filho mais velho sabe que teve “alguns problemas, mas nunca foi conversado abertamente”.

H., hoje com 43 anos, não consome desde 2010, quando aderiu a um programa de substituição com buprenorfina no CRI do Baixo Alentejo. A dose que toma atualmente é já tão diminuta que “não acusa” nos testes de rotina efetuados na estrutura.

“Neste momento venho ao CRI uma vez por mês ou de dois em dois meses.

Posso dizer que venho cá só para as ver, é mais psicológico do que outra coisa qualquer. Passo este bocadinho a falar com a psicóloga, de mim, dos meus filhos, da família”.

Por isso, “mais dia, menos dia”, se tal for possível, os planos passam por terminar o tratamento, até porque, admite, tem sido somente o receio de uma possível recaída que o tem mantido “estes 13 anos” no CRI. “Também arranjei outras ocupações, a maturidade também é outra, por isso não faz sentido voltar à mesma vida, teria de ser muito estúpido para o fazer. A minha vida mudou, conheci outras pessoas, tenho um trabalho diferente, acho que estou preparado para começar a libertar-me, para iniciar outra fase”.

 

Beja com segunda taxa mais alta de utentes em tratamento Segundo o “Relatório anual de 2022 – A situação do País em matéria de drogas e toxicodependências”, publicado em dezembro último pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad), o distrito de Beja continua a apresentar a segunda taxa mais alta de utentes em tratamento por habitantes de 15-64 anos (por 100 000 habitantes), sendo só ultrapassado por Faro.

De acordo com os dados do Sicad, desde 2019 que Beja tem a segunda maior taxa de utentes por habitantes no intervalo etário referido, embora se tenha vindo a registar, entre 2019 e 2022, um ligeiro decréscimo.

No que concerne à taxa de novos utentes, Beja ocupa, porém, a par de Portalegre, o primeiro lugar, e nos utentes readmitidos surge em sexto no conjunto dos 18 distritos. Comparativamente a anos anteriores, 2022 é o que apresenta as taxas mais altas de novos utentes e utentes readmitidos por habitantes de 15-64 anos, superando já os valores pré-pandemia. Virgínia Santos, responsável clínica da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (Dicad) do Alentejo e coordenadora do CRI do Baixo Alentejo, adianta, em declarações ao “Diário do Alentejo”, que parece “haver alguma relação com o isolamento social, a falta de ocupação tanto laboral como de lazer”.

De acordo como o mesmo relatório do Sicad, em 2022 estiveram em tratamento, no distrito de Beja, 487 utentes, mais cinco do que em 2021 e mais sete do que em 2020. Destes 487 utentes, 49 iniciaram a terapêutica nesse ano e 35 eram readmitidos. Em comparação com 2021, o número de novos utentes quase duplicou, passando de 26 para 49, e os readmitidos também sofreram um aumento, de 23 para 35. Em 2019 estiveram em tratamento 516 utentes, sendo 34 novos utentes e 22 readmitidos.

O decréscimo verificado em 2020 e 2021, refere Virgínia Santos, “seguramente que se relaciona com a pandemia de covid-19, com os frequentes isolamentos, a menor capacidade de resposta das equipas que tiveram que restringir a sua atividade e recriar novas formas de intervenção como as videoconsultas e teleconsultas que, infelizmente, no nosso território e na população em que intervimos, nem sempre é viável”.

Em 2021, continua a responsável clínica, “verifica-se um ligeiro aumento do número de utentes em tratamento e, particularmente, um aumento considerável de novos utentes”.

No seu entender, este aumento em 2021, “que veio a progredir nos anos seguintes”, deve-se “ao retorno progressivo à atividade normal, mas também à pandemia, em que se assiste a um aumento de consumos e/ou a um acréscimo significativo de novos casos não só de dependência com substância como sem substância”. O aumento de novos utentes “é também significativo”, acrescenta, e “parece estar relacionado não só com o período de isolamento decorrente da pandemia como com a grave crise social que atravessamos. Por outro lado, o crescimento do número de migrantes asiáticos com comportamentos aditivos também contribuiu para este crescimento”, (ver caixa).

Virgínia Santos sublinha, no entanto, que se se considerar “o álcool e as dependências sem substância”, o número de utentes, em 2022, “passa a ser de 663, com 62 novos utentes e 40 readmissões”. Já em 2023, segundo dados disponibilizados pela coordenadora – o relatório do Sicad referente ao ano passado só deverá ser publicado em dezembro –, estiveram em tratamento no CRI do Baixo Alentejo 715 utentes, sendo 50 novos e 32 readmitidos. Estes dados incluem, no entanto, “todas as tipologias de comportamentos aditivos (álcool e sem substância)”.

No primeiro trimestre deste ano, embora os dados estatísticos referentes a utentes em tratamento, novos utentes e readmissões ainda não estejam disponíveis, Virgínia Santos frisa que “tem havido grande procura por parte de novos utentes”. “A grosso modo direi que se mantém o número de utentes em tratamento e as readmissões, tem havido um significativo aumento nos novos utentes, mas ainda não é possível dar valores”, reforça.

 

“Álcool é a substância mais consumida” Dentro das substâncias consideradas ilícitas, salienta a responsável, a heroína, que “inicialmente era a mais referida” pelos utentes que recorreram ao CRI, “apesar de ter um peso significativo, podemos dizer que está estabilizada, exceto nos utentes migrantes asiáticos, em que se revela problemática”.

Na população mais jovem que tem procurado ultimamente os serviços há três substâncias consumidas em associação que estão a “ganhar terreno” e que são alvo de “preocupação”: “o álcool, os canabinoides e a cocaína”. Vão aparecendo, também, “alguns consumidores de cocaína e/ou crack isoladamente, o que também constitui preocupação”. “Drogas sintéticas e anfetaminas sabemos serem consumidas em núcleos restritos, mas ainda não chegaram ao tratamento.

O mesmo se aplica aos opioides fentanilo e oxicodona. Estas substâncias, cujo consumo está a aumentar e a preocupar nos grandes centros urbanos, ainda não são frequentes nas nossas consultas”, diz, ainda, a responsável, sublinhando que “o álcool, é sem dúvida, a substância mais consumida e continua a preocupar, não só na população mais idosa como nos jovens”.

Ainda de acordo com os dados disponibilizados ao “Diário do Alentejo”, os utentes em tratamento no CRI do Baixo Alentejo são maioritariamente homens (85 por cento), com uma média de idade de 50 anos (60 por cento), com baixa escolaridade (74 por cento), reformados ou desempregados (75 por cento), sendo que nove por cento têm trabalho ocasional.

Em termos de proveniência, destacam-se os concelhos de Ferreira do Alentejo (22 por cento), Moura (21 por cento), Aljustrel (20 por cento) e Vidigueira (19 por cento).

 

Utentes migrantes duplicam No que à população migrante diz respeito, no final de março estavam “ativos” no CRI do Baixo Alentejo “62 utentes”, número que duplicou “no último ano”. Segundo Virgínia Santos, os utentes migrantes, todos do sexo masculino, recorrem à estrutura, “particularmente, por consumo de heroína, mas também alguns casos por consumo de álcool”.

“Referem consumos de heroína e de poppy flowers, que contêm opiáceo.

Alguns também consomem cocaína paralelamente. Conhece-se, ainda, a existência de um número significativo com dependência de fármacos usados na terapia da dor central ou periférica, o que constitui preocupação para os técnicos do CRI”, adianta, ainda. Mas a grande preocupação com os utentes migrantes, sublinha, “é a difícil adesão à terapêutica”.

“A grande maioria destes utentes é de redução de riscos/minimização de danos.

A falta de legalização de grande parte desta população implica grandes dificuldades em cuidados de saúde. Na tentativa de minimizar a difícil acessibilidade à realização de análises, fazemos, sempre que possível, quando chegam até nós, testes rápidos para deteção de hepatites virais (B e C), VIH e sífilis.

E refira-se já termos detetado positividades que encaminhámos para meio hospitalar”.

A barreira linguística, frisa Virgínia Santos, “é outro entrave”, devido à “impossibilidade no encaminhamento para comunidade terapêutica ou de psicoterapia”.

“Entram em programa de substituição opioide com metadona, mas na maioria dos casos abandonam poucos dias depois, para dias mais tarde virem pedir de novo para entrar.

Esta dificuldade de permanência em programa de metadona tem, na maioria dos casos, a ver com o trabalho agrícola que os desloca frequentemente para outras localidades impossibilitando a vinda diária ao CRI para toma de metadona. Seria necessário, e é um projeto em mente, a parceria com alguma instituição que possibilitasse a existência de uma carrinha que fosse ao encontro destes utentes, uma proximidade que melhor os servisse”, conclui.

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