Diário do Alentejo

Invisíveis: inquietude

23 de fevereiro 2024 - 12:00
Depois de quase dois anos em situação de sem-abrigo, Hugo regressou a casa da mãe e arranjou trabalho

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Esta é a história de Hugo.

 

Texto | Nélia Pedrosa Fotos | Ricardo Zambujo

 

Hugo pede desculpa. Diz que é de poucas palavras. Que não gosta de falar de si. Que não se lembra de datas precisas, o que, admite, o deixa envergonhado. Que o incomoda estar muito tempo fechado no mesmo espaço. Em meados de novembro último, quando contou a sua história ao “Diário do Alentejo”, residia, desde maio, no Centro de Acolhimento de Emergência Social (CAES) de Beja, para onde foi encaminhado pela Equipa de Rua do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas Diocesana. O primeiro contacto com a equipa tinha-se dado há pouco mais de um ano, em setembro de 2022, tinha então 29 anos. Dormia, havia uns seis meses, no antigo “edifício da Refer”, também em Beja, num simples colchão, enrolado em mantas oferecidas por uma associação, a mesma que também lhe providenciava alguma da comida com que matava a fome. Não era, contudo, a primeira vez que se via numa situação de sem-abrigo, e não seria a última. Nos últimos tempos andava a pernoitar em carros, nas ruas de Moura, a sua cidade natal, depois de a mãe o ter expulsado, uma vez mais, de casa. Um dia, numa das habituais deslocações ao Centro de Respostas Integradas (CRI) de Beja, onde integra um programa de substituição com metadona, decide não regressar. “Sentia vergonha de estar na minha própria terra e estar na rua, sem apoio da família, porque a minha mãe abandonou-me mesmo e já não era a primeira vez”, justifica.

Hugo chegou ao “edifício da Refer” por intermédio de outras pessoas na mesma situação de sem-teto. Era “onde muita gente dormia” e como era inverno “precisava de um sítio mais abrigado”. Durante o dia “andava por aí, sem rumo”, sempre sozinho – “Nunca quis a companhia de ninguém” –, sem motivação alguma. “Nem tinha ânimo para pensar, não tinha prazer em fazer nada, não sei… uma pessoa está na rua, está sem ninguém, ninguém olha para a gente”.

Depois de começar a ser apoiado pelo projeto “Estou tão perto que não me vês”, ainda esteve mais cinco meses a fazer da rua casa, entre a “Refer”, “umas obras” e um edifício abandonado no centro da cidade, até que, em fevereiro de 2023, entrou na Comunidade de Inserção (CI) da Cáritas. Mas a aversão a espaços confinados, a dificuldade em se adaptar às regras, acabaram por falar mais alto. Aguentou cinco semanas. No mesmo dia em que saiu da CI deu entrada numa comunidade terapêutica no distrito de Setúbal. Mas também não conseguiu cumprir o tratamento. Ao fim de um mês e meio abandonou a comunidade e dias depois regressou a Beja. “É o stresse, é esta coisa de estar lá dentro [da comunidade terapêutica], sei lá, não consigo estar num sítio fechado, não consigo, e não se pode sair de lá e eu tinha medo, tinha medo de mim ali. Qualquer coisinha enervava-me, sou muito impulsivo”. Hugo vê-se novamente numa situação de sem-abrigo e por isso recorre à Equipa de Rua da Cáritas. E é aí que é sinalizado para a resposta CAES, de forma a minimizar o impacto de pernoita na rua e o contexto de insegurança associado. “Também há regras, mas não é tão rígido”.

 

Vários episódios traumáticos

 

Hugo não teve uma infância fácil. Os maus-tratos infligidos pelo pai, alcoólico, eram frequentes, conta. Aos sete anos sofreu queimaduras de terceiro grau nas pernas, um incidente que acabaria por ter um impacto tremendo no seu percurso escolar e, consequentemente, na sua personalidade. “Estive internado uns meses, [depois] andei na escola mas não fazia esforço nenhum”. Aos 15, 16 anos, inicia-se nas drogas ditas leves, só para experimentar. “Logo na primeira vez nem liguei muito a isso, mas, depois, as companhias… no meu bairro havia muita gente que consumia”. Daí à heroína foi um pulo. E com a dependência vieram os pequenos roubos e as “garreias”. “Coisas de moço mais novo”, diz. No fim da adolescência, início da idade adulta, dá-se outro evento traumático na sua vida, que acabou por dar origem à frase que acompanha o seu autorretrato que faz parte da campanha de sensibilização lançada pela Cáritas – “Aprendi muito cedo que uma corda pode ter na ponta um homem pendurado”. “Eu é que tirei o meu padrasto da corda, porque eu estava a dormir e a minha mãe chamou-me e quando saio do meu quarto vejo-o pendurado. Mas não gosto muito de falar disso, não gosto de lembrar”. É também por volta dessa idade, enquanto está em tratamento numa comunidade terapêutica em Beja, que finalmente aprende a ler e a escrever, ainda que mal. Alguns anos mais tarde, os roubos e as “garreias” acabariam por o levar ao Estabelecimento Prisional de Setúbal, onde esteve dois anos, sem qualquer visita da família. Outro evento traumático, admite. “Telefonaram uma vez para saber se eu estava lá preso e depois nunca mais disseram nada. Foi duro, porque não conhecia ninguém. Em dois anos ninguém me visitou”, lamenta.

Quando saiu da prisão, como não tinha onde ficar, acabou por ser apoiado pela Cáritas de Setúbal. “Deram-me dormida, comida, foi lá que me fizeram o meu primeiro Rendimento Social de Inserção (RSI), estive lá uns seis meses”. Ainda ponderou ficar por lá, mas os irmãos começaram a dizer-lhe que era uma cidade “muito tentadora”. “Diziam que era pior para mim, que era só maldades e drogas”. Hugo regressa, assim, a Moura e fica a viver com os irmãos. Pouco tempo depois arranja um “trabalho no campo” e um quarto. Tudo parecia estar a recompor-se. Até que “uma recaída, um único consumo”, acabaria por lhe trocar as voltas. Entretanto, “o trabalho acaba-se” e Hugo não conseguiria pagar a casa e alimentar-se só com o RSI. E é aí que decide trocar Moura por Beja. “Tinha o meu trabalho, a minha casa e, depois, tudo descambou. O que mais desejo agora é ter um trabalho, qualquer coisa, para manter a cabeça ocupada e ter o meu dinheiro para pagar as minhas coisas, porque já tive essa experiência, já tive isso”, dizia, em meados de novembro.

"Aquilo cheirou-lhe a escola”

 

 

O Hugo “tem um ódio de pele a tudo o que lhe cheira vagamente a contexto de aprendizagem mais formal, ou seja, à escola de uma forma geral”, sublinha Cristina Taquelim, mediadora do laboratório dedicado à narração e escrita, um dos três desenvolvidos no âmbito do projeto “Estou tão perto que não me vês”. “E tem razões para isso”, acrescenta. “A instituição escolar tratou muito mal o Hugo, aliás, a vida tratou muito mal o Hugo ao longo do seu caminho, e ele tem experiências de grande fracasso em relação à escola, portanto, a reação dele quando se vê numa sala [no âmbito dos laboratórios], aquilo cheirou-lhe a escola”, reforça a também psicóloga de formação. Devido às queimaduras de terceiro grau que sofreu na infância, e ao consequente internamento, adianta a mediadora, quando “entra na escola leva um atraso de aprendizagem e de competências psicossociais que foi sendo alimentado”. E “como é que se pode pedir a um moço de 13 ou 14 anos sem conseguir ler uma letra que tenha bom comportamento numa aula de geografia”?, questiona. Por isso, “havia dias em que o Hugo conseguia estar meia hora nos laboratórios, concentrado, havia dias em que ele não conseguia estar, havia dias em que ele não aparecia, mas avisava, e isso foi uma das coisas que combinámos”. Progressivamente, começou “a estar o tempo todo, a ficar até ao fim e a perguntar se fazia falta para alguma coisa”.

Mas “o ter cheirado a escola” acabou por ser muito útil para os mediadores, considera Cristiana Taquelim. “Aprendemos muito com aquilo que observamos na resposta de quem está à nossa frente e percebemos que o modelo de trabalho do Daniel [Antunes], da Catarina [Bico] e meu tinha que ser o mais afastado possível daquilo que fosse a experiência que as pessoas foram construindo na sua relação com a escola. O Hugo foi uma pessoa importantíssima, no meu caso, para me ajudar a encontrar o modelo de aprendizagem, de discussão, de diálogo, o mais afastado possível das aprendizagens formais do que quer que seja, porque ele já fez muita formação do IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional], já fez muitos cursos de jardinagem, fez ele, e se formos ver no grupo, fizeram muitos. Fizeram muitas formações que não resultaram em coisíssima nenhuma e que não mudaram, nem permitiram ganhar competências para a empregabilidade de forma a que as pessoas fossem autónomas”.

“Esta marca” que ficou no Hugo dos seus tempos de escola, reforça a mediadora, é “dificílima de ultrapassar”, mas difícil também “é ajudar a desenhar ou apoiar a construção de um projeto de vida para este moço, que é aquilo que todas as pessoas que o rodeiam querem, e ele mais do que toda a gente, porque as competências que tem de inserção no mercado de trabalho são baixas, porque o facto de não estar devidamente alfabetizado dificulta tudo”, continua. O trabalho com o Hugo, e com a maioria dos participantes nos laboratórios, acabou por ser “muito centrado nas rotinas, muito centrado [no facto] de não ser capaz, de achar que não ia funcionar, desistir, voltar”. “Eu dizia-lhe: ‘estás a ver como funciona, olha lá o que eu escrevi sobre a conversa que a gente teve ontem, foi isto que tu quiseste dizer?’”.

Para Cristina Taquelim, “foi um grande desafio conquistar o Hugo”, que “ele confiasse para partilhar histórias”. Do grupo, a mediadora recorda que “foi das pessoas que até mais tarde pediu reserva sobre a sua situação”. “Progressivamente foi-se abrindo, mas houve pessoas que disseram logo: ‘eu falo’, ‘eu exponho’. O Hugo foi das pessoas que, sempre que a gente tinha que tomar em conjunto a decisão de tornar público ou de como é que tornávamos público, pedia reserva sobre a sua situação. Mas isto tem a ver com o tempo e com a reelaboração que cada um deles já fez sobre o seu processo e sobre o seu percurso”.

“A instituição escolar tratou muito mal o Hugo, aliás, a vida tratou muito mal o Hugo ao longo do seu caminho, e ele tem experiências de grande fracasso em relação à escola, portanto, a reação dele quando se vê numa sala [no âmbito dos laboratórios] aquilo cheirou-lhe a escola”

Cristina Taquelim

“Munição de ferramentas”

 

Dos três laboratórios – “Insilenciáveis – Narrativas de Memória”, “Click – Narrativas Visuais” e “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração”, dinamizados pela Chão Nosso, foi o segundo, dedicado à fotografia, que, ainda assim, conseguiu cativar mais a atenção de Hugo, ainda que na primeira aula, de natureza mais teórica, não tenha demonstrado qualquer interesse, recorda o mediador Daniel Antunes. “O Hugo desde o início mostrou sempre uma distância: ‘Isto não é bem para mim, não é isto que eu procuro, estou só aqui a passar o tempo, estou aqui porque tenho de estar’. Lembro-me, e isso ficou-me presente, que a preocupação dele assim que chegava era saber onde é que estava a folha para assinar a presença”. Mas, na segunda sessão, com a saída para as ruas do cento histórico, as mesmas ruas que Hugo e os colegas de projeto tão bem conheciam, “aí, sim, começou a mostrar muita iniciativa”. Daniel Antunes frisa que houve “uma evolução quase imediata”. O Hugo “começou logo a contar ali histórias, era dos poucos – e não estou a dizer isto por estar a falar especificamente dele –, mas era dos poucos que tinha muita iniciativa de, antes de fazer o clique, vir explicar-me o porquê”. A justificação para esta mudança repentina de comportamento era simples: “No momento em que ele começou a compreender que não tinha de falar para transmitir uma mensagem, acho que ele ali abriu muito o jogo e daí eu acreditar que o laboratório de fotografia terá sido o favorito dele. Foi, sem dúvida, neste laboratório que ele mostrou mais o que ele é”. O facto de percorrerem um “meio que lhes era familiar”, as ruas do centro histórico, também “proporcionou muito do à vontade” que tinham com o mediador, considera.

O laboratório de fotografia acabou, assim, no entender de Daniel Antunes, por permitir “uma munição de ferramentas”, é essa a “interpretação” que mais lhe agrada. O projeto chegou ao fim, mas o fotógrafo acredita que “pelo menos a mensagem ficou lá”. “Se ele quer dizer alguma coisa não tem de o fazer verbalmente, não tem de o fazer por escrito, pode, sim, usar a fotografia, pode clicar uma coisa para contar uma mensagem. É essencialmente essa a raiz de todo o laboratório, muni-los de uma ferramenta visual”, reforça, sublinhando que está convicto de que a maior dificuldade em relação ao Hugo “sempre foi, e continuará a ser, a não aceitação da sua história pessoal”. “Quando uma pessoa está neste tipo de situação e não aceita a própria história, não é fácil falarmos dela. No caso dos laboratórios, em que a narrativa pedia que ele contasse a história, a fotografia pedia que ele tornasse visível essa história e a ilustração pedia que ele ilustrasse essa história, então como é que uma pessoa fala abertamente de uma história que não aceita? O Hugo tinha estas revoltas diárias. Eu chegava e dizia: ‘quero este tema’, ‘vamos fotografar sobre isto’, e ele respondia: ‘não sei se quero fotografar sobre isso, é uma temática que me chateia’. A maior dificuldade era essa, de ele conseguir falar, tornar a sua história visível aos outros, e acredito que as histórias não se contam pelo medo do julgamento dos outros”. Parte das barreiras foram sendo quebradas com Daniel Antunes a fazer ver ao grupo que também ele tinha uma história e que não tinha medo de ser julgado ao contá-la. “Acredito que baixei a guarda deles porque não tenho julgamento, porque eu também tenho a minha história, todos nós temos, e não é vergonha nenhuma falar sobre isso”. Apesar da curta duração dos laboratórios, acredita que “houve uma mudança considerável no grupo todo, mas, essencialmente, no Hugo, na forma como ele passou a olhar para os outros, porque achava sempre que quando olhavam para ele tinham uma ideia pré-definida, devido à maneira como se veste, como fala, etc., etc.”.

A três dias do fim do ano, e sensivelmente um mês e meio depois de ter falado com o “Diário do Alentejo”, Hugo regressou a Moura, à casa da mãe, com quem foi “trabalhando” uma reaproximação, e conseguiu trabalho na área da agricultura.

“Acredito que baixei a guarda deles porque não tenho julgamento, porque eu também tenho a minha história, todos nós temos, e não é vergonha nenhuma falar sobre isso”.

Daniel Antunes

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