Diário do Alentejo

Invisíveis: vida

21 de fevereiro 2024 - 20:00
J. saiu da sua terra à procura de uma vida melhor, movido por promessas de trabalho condigno, demasiadas vezes impostoras

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Hoje encontramo-nos com J..

 

Texto | José Serrano  Foto | Ricardo Zambujo

 

“O sonho era ter uma vida melhor. Era só isso que eu queria, uma vida melhor”. Quem nos explica o que sente como evidente, de mãos abertas, como se de uma prece se tratasse, à altura dos olhos negros, é J.. O silêncio acompanha, agora, a cabeça caída entre os ombros do homem novo, com pouco mais de 30 anos, a sentir-se esgotado por ter de repetir, uma vez mais, a simplicidade de um óbvio que teima em não chegar, dia após dia após dia. Por que outra razão haveria de deixar a sua cidade, onde nasceu e sempre viveu? Por que outro motivo haveria de ficar sem a companhia do seu irmão e da sua irmã, do sobrinho querido que com tanta saudade recorda? Foi esse desígnio, o de uma vida melhor, do qual se sente merecedor, que o impeliu a aceitar a aventura de emigrar, proposta por um conterrâneo seu, a deixar o seu trabalho, a casa da família, a entrar para dentro de um avião que haveria de aterrar na capital de um país que dista nove milhares de quilómetros das suas raízes, na Índia. “Lá, era empregado numa empresa de aluguer de camiões. Fui ensinado pelos meus pais – já morreram os dois, tinha eu 20 anos – que, para além de termos de ser boas pessoas, devemos trabalhar arduamente, para conseguirmos amealhar dinheiro suficiente para abrir um negócio, por nossa conta – é este o percurso com que todos sonhamos. E trabalhar muito foi o que eu fiz. Mas na Índia há muita gente, não há trabalho para todos, e nos empregos que existem pagam-te, na maioria, uma miséria de dinheiro, que só dá, praticamente, para comprares comida”. Começou, então, a sonhar com a Europa, incentivado pelos relatos que lhe chegavam. Que no continente o trabalho era abundante e os salários generosos, que permitiam não só uma boa alimentação, como a possibilidade de se poder comprar roupa nova. Uma casa, imagine-se. Possivelmente, “se não tivermos medo de trabalhar, e eu não tenho”, uma loja – “Gostava tanto de ter um minimercado”.

Chegado a Lisboa, sozinho, nos finais de 2022, apanhou o autocarro para Beja. O contacto laboral que tinha funcionou sem qualquer problema. Começou, de imediato, a trabalhar no campo, em alguns dos olivais e amendoais que atapetam grande parte do Baixo Alentejo, onde chega a água do Alqueva. “Trabalhava oito horas por dia – mas era um trabalho pesado – e ganhava 36 euros. Os serviços eram sempre à volta da cidade, em Baleizão, em Ferreira do Alentejo, em Beringel, em Serpa. Trabalhei nessas terras todas, depois de chegar aqui. Mas nunca tive nas mãos dinheiro nenhum, não ficava com nada. Zero. Tudo o que ganhava era para pagar a comida e a minha cama”. “Benesses” que lhe eram providenciadas pelo patrão, também ele indiano. Foi assim durante algum tempo, a trabalhar para se alimentar e ter um teto. Apenas isso. Mas a precariedade haveria de se revelar mais severa e a dura realidade do emprego sazonal inclemente, pois menos de seis meses depois de chegar a Beja viu-se despedido. Que não havia, naquela altura, mais trabalho para ele, que tinha de se ir embora da camarata que o abrigava da noite – ao perder o trabalho perdeu o alojamento.

Foi nesse momento de aflição que soube que em seu nome não havia qualquer registo de descontos sociais, situação que hoje não o deixaria incrédulo. “A grande maioria dos patrões indianos e paquistaneses são muito más pessoas, poucos são bons…”. Pediu, então, ajuda aos seus irmãos. Enviaram-lhe dinheiro da Índia – “mas não me puderam emprestar muito, que também têm dificuldades” – para J. conseguir comprar comida e alugar uma cama. Mas essa parca quantia depressa acabou “e os meus amigos indianos, que fiz aqui, não têm tempo, nem posses, para me poderem ajudar, todos estão preocupados em manter o seu posto de trabalho, em lutar pela sua própria sobrevivência”. Procurou outros patrões de labores agrícolas, mas não era a altura de recrutar pessoal para fainas no campo. Ofereceu-se como empregado em cafés e restaurantes. “Mas, Portugal, aos indianos e paquistaneses, só lhes dá trabalho na agricultura” e a resposta era-lhe devolvida sempre da mesma maneira, de tal modo e com tanta previsibilidade que a frase, repetida vezes sem conta, fixou-se, juntamente com “bom dia”, “boa noite”, “quanto custa?” e “obrigado”, no seu acanhado vocabulário português: “não tem, não tem, não tem”. Não tem trabalho, entenda-se. Depois, pensou deixar Portugal, ir para outra cidade europeia, mas o passaporte de J. “estava perdido” e regressar ao seu país era inviável. Os turbilhões de acontecimentos negativos desmoronaram-lhe, pedra por pedra, as fundações do seu sonho europeu. E J. sentiu-se absolutamente perdido, imensamente frágil, assustadoramente indefeso, enrolando o medo noturno no corpo gelado, dorido pela rijeza do postal turístico da calçada portuguesa. Na rua. Em Beja.

 

A ajuda da Cáritas

 

Foi um cidadão português que, ao vê-lo dormir na rua, informou J. acerca dos serviços sociais da Câmara de Beja que lhe poderiam prestar apoio. Decidiu, então, relatar ao município a sua situação, tendo sido, a partir daí, ativada a resposta de alojamento no Centro de Acolhimento de Emergência Social (CAES) da cidade. Entrou no CAES a 30 de abril de 2022 e saiu no dia 12 de setembro, do ano seguinte, mês em que voltou, novamente, a arranjar trabalho nos olivais, com o respetivo alojamento.

“Saiu do CAES por vontade própria, pois quis autonomizar-se, mas continuou a frequentar, [tal como o fazia habitualmente], na Cáritas Diocesana de Beja, o espaço ‘Estórias’, por querer manter a relação de confiança que alicerçou com a equipa – e nós gostamos de o acompanhar, de ir sabendo dele”. Quem o diz é Inês Jacinto, psicóloga, técnica da Cáritas Diocesana de Beja, responsável pelo processo de J., que nos informa acerca das valências do drop-in “Estórias”, direcionado a pessoas em situação de sem-abrigo – “Um lugar de escuta, onde se desenvolvem competências profissionais, artísticas e de socialização com outros pares”. Pares, cujo número, de acordo com a técnica, tem vindo a aumentar: “Sem dúvida que há, atualmente, um fluxo maior de chegada de imigrantes a Beja, muito perpetuado pela ideia de que, aqui, é mais fácil arranjar documentos, um título de residência, ter uma vida melhor. Mas quando cá chegam veem que a história não é assim tão cor-de-rosa como a imaginaram, ao ouvi-la, pois a maioria dos imigrantes trabalha com base na sazonalidade”. Nesse sentido há, muitas vezes, por parte de quem aqui chega, vindo de fora, “um choque de realidade”, assim que sente a sua vida a complicar-se, sublinha Inês Jacinto. Uma história recorrente de sonhos desvanecidos, pela ausência periódica de trabalho. Ao encontrar-se nessa difícil situação, “há quem peça ajuda à família, que lhe providencie algum dinheiro, mas muitos dos familiares dos que aqui se encontram também estão em situações de pobreza, no seu país de origem. Têm, então, de recorrer a nós [Cáritas de Beja,] à câmara, às várias associações sociais que fazem parte do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de Beja (Npisa)”, solicitando uma resposta a nível alimentar e de alojamento. Uma proteção social disponibilizada imensamente reconhecida por J.: “Ter ficado na rua foi a pior situação que alguma vez me aconteceu. Nunca imaginei que tal me poderia suceder. Fui-me abaixo, estava com uma grande depressão quando cheguei à Cáritas. Mas ali encontrei pessoas muito amáveis, que me ajudaram muito. Estou-lhes imensamente agradecido”.

Estava, precisamente, integrado no projeto CAES, a frequentar diariamente o espaço “Estórias” – “Para além de ser comunicativo e de fácil trato, é habilidoso em trabalhos manuais, gosta de fazer colares, pulseiras, tererés, com materiais diversos” –, quando J. foi convidado a integrar o grupo de 10 pessoas que, apoiado pelos três monitores da cooperativa cultural Chão Nosso, assina a autoria da exposição “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Mostra que, após ter concluído a sua apresentação ao público, em Beja, no final de janeiro, se pretende, agora, itinerante por outros concelhos da região.

“Sem dúvida que há, atualmente, um fluxo maior de chegada de imigrantes a Beja, muito perpetuado pela ideia de que aqui é mais fácil arranjar-se documentos, um título de residência, ter uma vida melhor. Mas quando cá chegam veem que a história não é assim tão cor-de-rosa como a imaginaram, ao ouvi-la, pois a maioria dos imigrantes trabalha com base na sazonalidade”.

Inês Jacinto

 

“Ele nunca clicou acidentalmente no botão de disparo, só porque ‘era giro’. Havia sempre uma intencionalidade artística, muito focada nos pormenores, que me permite dizer, olhando para o conjunto total das suas fotografias, que existe no seu trabalho a indicação de um forte sentido de procura de pertença a um lugar, de construção de alicerces”

Daniel Antunes

A criação artística, a exposição

 

Dos três ateliês propostos, “Insilenciáveis – Narrativas de Memória”, “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração” e “Click – Narrativas Visuais”, foi a este último que J. se dedicou, quase, em exclusividade. “Quando ele aqui chegou, nas primeiras reuniões que tivemos, senti-o perdido, pela estória difícil que estava a viver. Contudo, sempre manifestou um pensamento positivo, a disponibilidade de fazer novas amizades e nelas encontrar conforto. Senti que tinha sonhos e objetivos concretos, mas que não tinha a noção do caminho a tomar para conseguir atingi-los”, diz Daniel Antunes, o monitor de fotografia da exposição. Caminhos que, pela criação artística desenvolvida, em comunhão com os outros autores, terão começado a ficar menos sombrios, enfatiza Inês Jacinto: “Participar na exposição permitiu-lhe sentir, numa altura em que se encontrava muito fragilizado, sem trabalho, que lhe tinha sido dada a oportunidade de participar em algo maior. Que, afinal, há quem queira ouvir a sua voz e a sua história e que estas são valorizadas”. Desta forma, “esta iniciativa contribuiu para lhe fazer chegar uma luz de esperança, para lhe dizer que os seus sonhos, ainda que pudessem estar à espera, não estavam perdidos”.

Daniel Antunes refere que através dos desafios fotográficos propostos, “absorvendo o que a rua nos dá e a partir daí ir construindo uma narrativa visual”, J. começou, desde o início, a evidenciar “uma interessante e elaborada construção reflexiva”, associando a imagem revelada pela câmara fotográfica instantânea a pequenos flashes da sua vida – uma porta em Beja, com características árabes, que lhe parecia a porta de um vizinho seu, na Índia, trouxe-lhe à memória imagens da sua cidade, excertos do seu passado, por exemplo. “Ele nunca clicou acidentalmente no botão de disparo, só porque ‘era giro’. Havia sempre uma intencionalidade artística, muito focada nos pormenores, que me permite dizer, olhando para o conjunto total das suas fotografias, que existe no seu trabalho a indicação de um forte sentido de procura de pertença a um lugar, de construção de alicerces – seja uma casa, uma família, um negócio – e que ele tem um raciocínio concreto de por onde se deve começar, que é de baixo para cima”. A meditação proporcionada pelas imagens captadas permitiu a J. confidenciar analogias ao seu “mentor” fotográfico, relembra Daniel Antunes: “Uma das vezes, nos dois minutos que decorrem desde o click até a imagem instantânea se revelar totalmente, disse-me que aquela expectativa lhe era familiar, pois grande parte da sua vida tinha sido passada ‘à espera de alguma coisa’”. Por sua vez J. acentua o prazer que sentiu ao fotografar, “sobretudo, pessoas a trabalhar”, nas ruas de Beja, ajudando-o a superar um momento muito difícil. “Quando fotografava tinha sentimentos positivos. Assim que tiver uma vida melhor, quando tiver dinheiro, a primeira coisa que comprareié uma máquina fotográfica”, anuncia.

A ajuda que a criação artística proporcionou a J. poderá ser, “julgo poder dizê-lo”, extrapolada a todo o grupo, considera Inês Jacinto. “A arte pode ser terapêutica e este projeto teve a função de levar os seus autores a refletir acerca da sua situação, de forma construtiva, integrando as suas vivências de uma forma mais adaptativa, mais elaborada e menos traumática, dando outro significado à sua história, às suas dores, permitindo-lhe arrumar pequenos fragmentos, desarrumados, das suas vidas”. Em resumo, valoriza: “Este projeto permitiu-lhes o encontro com eles próprios, terem esperança num amanhã mais otimista”.

Por enquanto, J. continua num equilíbrio laboral periclitante, entre um mês que tem emprego e um outro que passa à procura, com a técnica da Cáritas a frisar que a prioridade da instituição, relativamente a este jovem indiano, à semelhança do que acontece com outros utentes, é ajudá-lo a capacitá-lo, para “poder encontrar ofertas de trabalho, com contratos um bocadinho mais confiáveis, digamos, e mais estáveis”.

J. despede-se (de nós) com a mesma frase com que iniciámos esta conversa. Transportando-a agora, todavia, do pretérito para o presente. “O meu sonho é ter uma vida melhor”.

“Trabalhava oito horas por dia – mas era um trabalho pesado – e ganhava 36 euros. Os serviços eram sempre à volta da cidade, em Baleizão, em Ferreira do Alentejo, em Beringel, em Serpa. Trabalhei nessas terras todas, depois de chegar aqui. Mas nunca tive nas mãos dinheiro nenhum, não ficava com nada. Zero. Tudo o que ganhava era para pagar a comida e a minha cama”.

 

J.

A ambição maior dos migrantes 

 

Desenvolvido ao longo de dois anos pelas docentes Sandra Saúde, Sandra Lopes e Ana Piedade, do Instituto Politécnico de Beja, e apresentado em dezembro de 2023, o relatório final de avaliação do “Estou Tão Perto Que Não Me Vês”, projeto da responsabilidade da Cáritas Diocesana de Beja que pretende criar uma resposta de carácter inovador no território capaz de potenciar novas oportunidades de empregabilidade das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PSSA), refere, entre outras, as seguintes conclusões. Foram sinalizadas, entre março de 2022 e setembro de 2023, no concelho de Beja, 449 PSSA, sendo que, em termos de perfil geral, se destacam como características principais do grupo o facto de serem maioritariamente homens (407, o que corresponde a 90,65 por cento do total), jovens, solteiros, em idade ativa, de nacionalidade não portuguesa (373, vindos de 18 países estrangeiros, em que se evidenciam Timor, Marrocos, Argélia e Índia), migrantes laborais, em situação não regular em Portugal (236, correspondente a 64,66 por cento) e em que o desemprego e/ /ou falta de trabalho determinou a sua situação de máxima vulnerabilidade, isto é, na situação de sem-abrigo “sem teto”. Importa aqui referir que a situação de sem-abrigo pode configurar três perfis diferentes: “Sem teto” (227 das 449 PSSA sinalizadas) – pessoas que pernoitam no espaço público (jardins, estações de comboio, paragens autocarro, estacionamentos, passeios) ou em locais precários (carros/casas/prédios abandonados, vãos de escada, entradas de prédios); “sem casa” (183 das 449) – pessoas que pernoitam em alojamentos específicos para pessoas sem casa, em centros de alojamento temporário ou em quartos pagos para pessoas sem casa; “em risco” (39 das 449) – pessoas que pernoitam em habitação não convencional e não adequada, em instituições de saúde ou temporariamente em alojamento provisório.

Das várias causas que originaram, neste grupo de 449 pessoas sinalizadas, a situação de sem-abrigo, a maioritária relaciona-se com desemprego ou precariedade no trabalho (363 PSSA, cerca de 90 por cento do total).

O estudo permite, também, concluir que o grupo predominante distingue-se “pela sua mobilidade e impermanência nos locais, sendo que a ambição maior dos migrantes laborais é garantir melhores condições de vida e arranjar trabalho”, motivos que justificam a sua passagem por Portugal e, em particular, por Beja. É este, também, e tão-somente, o sonho de J.

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