Diário do Alentejo

atentados

10 de fevereiro 2024 - 08:00
Bombas reivindicadas pelas FP-25 danificaram 18 viaturas no bairro alemão de Beja há 39 anosFoto | “DA”/Arquivo

Na madrugada do dia 1 de fevereiro de 1985, os residentes no bairro alemão de Beja acordaram ao som das “bombas relógio” que foram colocadas em automóveis de militares e civis germânicos. Os oito rebentamentos, que se sucederam com curtos intervalos, provocaram a destruição de 18 viaturas, algumas delas propriedade de portugueses. Os atentados acabariam por ser reivindicados pelas FP-25. O então oficial da Força Aérea Vieira de Sousa e a filha Olga e os primos Paula Godinho e João Luís Cardeira relembram, ao “Diário do Alentejo”, os acontecimentos daquela madrugada. 

 

Texto Nélia Pedrosa

Foto “DA”/Arquivo

 

Faltavam poucos minutos para as 2 da madrugada do dia 1 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira, quando a primeira das oito “bombas relógio” que foram colocadas em automóveis de militares e civis germânicos em serviço na Base Aérea n.º 11, de Beja, rebentou no bairro residencial alemão. Segundo noticiava o “Diário do Alentejo” (“DA”) na sua edição de 8 de fevereiro desse ano, “as explosões sucederam-se com curtos intervalos”, tendo a última ocorrido às 02:24 horas. Os rebentamentos, com bombas “consideradas pelos peritos de média potência”, resultaram na destruição de 18 viaturas, algumas propriedade de portugueses.

“A maneira espaçada com que se deram os rebentamentos gerou grande pânico no local e só por mero acaso não fez vítimas entre as pessoas que saíram das suas casas para presenciar os efeitos da primeira das explosões, passando muito perto do segundo automóvel que viria a ser destruído. Também vidros de residências próximas ficaram estilhaçados”, referia, ainda, o “DA”.

Vieira de Sousa, então oficial da Força Aérea na casa dos 50, que morava no 2.º andar do bloco A-3, a meia centena de metros de um dos estacionamentos onde rebentaram as primeiras bombas, recorda-se bem dessa madrugada. “Ouvimos primeiro duas explosões, depois uma terceira e mais umas ali em cima [na outra ponta do bairro]. Toda a gente veio à varanda. Tudo em alvoroço. Entretanto vi o comandante [da Base Área], que morava aqui ao lado [também nos blocos destinados aos oficiais], sair com uma bolsinha debaixo do braço, que seria uma pistola”.

Por serem os “mais velhos” do bloco A-3, recorda, por sua vez, a filha Olga, que tinha na altura 20 anos, o apartamento da família Vieira de Sousa acabou por se transformar naquela madrugada “num quartel-general”. “Foi tudo para a nossa casa. Aparecia um, aparecia outro, com moços pequenos ao colo. Foi tipo um abrigo. Lembro-me de irmos todos à varanda”, diz, adiantando que tem bem presente a imagem de “um clarão”, depois, de ouvir “um barulho” e, a seguir, ver “um capô saltar mais alto do que um dos prédios”. Mas só no dia seguinte é que perceberam que os alvos “eram os carros dos alemães”.

“Fizemos uma reunião [naquela madrugada], toda a gente, uns não queriam ir para casa, estivemos ali na conversa”, acrescenta Vieira de Sousa, sublinhando que “se desconfiava” que os atentados tivessem sido da responsabilidade “de alguns grupos” de opositores. Vieira de Sousa acabou por não sair à rua naquela madrugada para ver os destroços, até porque havia o receio “de haver mais alguma coisa que rebentasse”. Apesar dos rebentamentos, adianta, a normalidade do bairro alemão não foi afetada. Recorda-se, no entanto, de nos dias a seguir se terem intensificado as habituais “rondas” ao bairro por grupos de militares, principalmente, à noite, “mas depois isso esmoreceu”. “A vida na base também não foi afetada”, salienta.

Paula Godinho morava com os pais e com o primo no 1.º andar do bloco A-2, também nos edifícios destinados aos oficiais, a escassos metros do apartamento de Vieira de Sousa. Então com 14 anos, recorda-se de ter acordado com “barulhos lá em casa”. “Lembro-me de nos levantarmos todos para tentarmos perceber o que é se estava a passar. Da minha mãe a gritar e de o meu pai [que era capitão da Força Aérea] com aquela postura militar, muito sério. Lembro-me de irmos à nossa varanda da cozinha que dava exatamente para o estacionamento, para ‘o palco da coisa’. Lembro-me ainda de ver um colega do meu pai, também capitão, sair e pôr-se a espeitar por debaixo do carro para ver se havia uma bomba e de o meu pai só gritar: ‘Saia daí, saia daí’”. Paula ainda viu “rebentar duas bombas”. “Estava tudo cheio de medo, não fosse, por aí abaixo [junto ao edifício dos oficiais e dos sargentos], também haver bombas nos carros [dos militares portugueses]”. No dia seguinte, a caminho do então liceu de Beja, recorda-se de ver “carros destruídos, maioritariamente, Mercedes”.

“A minha mãe teve muito medo que nós saíssemos de casa no outro dia, porque ninguém sabia o que é que se tinha passado, nem o motivo, nem se ainda haveria aí alguma coisa que pudesse acontecer mais durante o dia. Depois começou-se a ouvir nas notícias que tinham sido as FP-25 [grupo Forças Populares 25 de Abril, organização de extrema-esquerda, surgida no princípio dos anos 80]. E depois tudo o que nós sabíamos desse movimento acabava por encaixar e fazer algum sentido. Pelo que se percebeu era um grupo, que não se denominava terrorista, claro, mas que queria acabar com o capitalismo, com o fascismo, com essas coisas todas acabadas em ismos”, acrescenta Paula, frisando que, “nos dias a seguir houve um bocadinho mais de tensão” no bairro, “especialmente, por parte dos mais velhos”, e que “a polícia aérea intensificou” a patrulha.

O primo, João Luís Cardeira, um ano mais novo, e “menos corajoso” do que Paula, não chegou a sair do quarto, mas lembra-se perfeitamente de ter contado as bombas. “Parece que estavam a rebentar por debaixo do prédio, tremeu tudo. Lembro-me de ser super violento”.

 

FP-25 reivindicam atentados Segundo o “DA”, “logo que as detonações, ouvidas a grande distância, foram localizadas, a Polícia de Segurança Pública fez deslocar para o bairro os efetivos disponíveis de momento, isolando as zonas afetadas, no receio de novos rebentamentos”, e, logo pela manhã, chegaram “elementos da Brigada de Combate ao Banditismo da Polícia Judiciária, que iniciaram as averiguações”, que mais tarde “tiveram prosseguimento em hangares da BA 11 [para onde os automóveis foram transportados], então por parte de técnicos alemães especializados em mina e armadilhas e na luta anti-terrorista, e que se deslocaram expressamente de Bona”.

Ainda nessa manhã do dia 1 de fevereiro, num comunicado destinado à então ANOP – Agência Noticiosa Portuguesa, as FP-25 acabariam por reivindicar os atentados bombistas no bairro alemão. No documento afirmavam que a ação se enquadrava na “política de luta pela defesa da independência nacional, pelo combate ao imperialismo e capitalismo”. “Não podemos admitir que no Alentejo, região com tradições de solidariedade com outros povos”, estacionem homens e material bélico, e apontavam, ainda, o propósito de lutarem “por todos os meios pela retirada incondicional das bases estrangeiras” no País.

O “DA” frisava, contudo, que as reivindicações das PF-25 não mereciam “total crédito de alguns observadores internacionais, pese embora a coincidência no tempo com o anúncio feito por organizações extremistas internacionais de prosseguirem as ações contra instalações da NATO na Europa”. Ao invés, continuava o jornal, “os investigadores portugueses responsáveis pelo ‘processo FP-25’ dizem que essa interpretação é incorreta e poderá visar o desprestígio da organização no seio de outras estruturas internacionais, como a ‘Ação Direta’ (francesa) e o “Exército Vermelho’ (alemão)”.

 

Atentados em residências de agrários O atentado no bairro alemão dá-se 12 dias depois dos rebentamentos junto a duas residências, também em Beja, na rua do Touro, e na praça Diogo Fernandes (vulgo “Jardim do Bacalhau”). Na primeira, propriedade de José Bernardino Lampreia, o atentado provocou “consideráveis danos no edifício, embora não tivesse feito qualquer vítima”, e, nos prédios das proximidades, “a destruição de inúmeras telhas e de dezenas de vidros, o mesmo chegando a acontecer com vidros do claustro do vizinho Museu D. Leonor”, detalhava o “DA” na sua edição de 25 de janeiro.

A segunda habitação, propriedade de Manuel Francisco Lampreia, ficou “seriamente” danificada “e só não terá causado vítimas entre os seus proprietários porque estes se encontravam deitados no 1.º piso, longe das janelas”, escrevia o “DA”. E continuava: “Esta explosão estilhaçou entretanto num raio de 200 metros os vidros dos muitos estabelecimentos comerciais da praça, o que representou assim um considerável problema para os seus proprietários que assim se viram com toda a mercadoria desprotegida. Automóveis estacionados no local foram também danificados”.

O impacto foi tal, que “guardas florestais que se encontravam a mais de 20 quilómetros da cidade, no monte de Santo Isidro [Salvada], disseram ter ouvido a explosão”, lê-se ainda nessa edição.

A viúva de Manuel Francisco Lampreia, Maria Rosa, prefere não recordar essa noite de 19 de janeiro de 1985, mas a filha, Maria de Fátima, que, com 24 anos, estava no segundo ano do internato médico em Faro, conta que os pais acordaram com o estrondo e foram para casa de uns vizinhos, a uns dois prédios de distância. E foi daí que lhe ligaram a dar conta do sucedido. “No outro dia de manhã vim logo para Beja”, recorda. Quando chegou deparou-se “com muita gente na rua, tudo cheio de pedras da calçada” e grades de contenção policial a delimitar a zona. “A destruição foi muito grande. Teve que se desativar as divisões da frente [da casa], inclusivamente no primeiro andar, e passou a entrar-se pela porta de trás. Partiram-se muitas coisas, caíram candeeiros, quadros. [A bomba] até partiu os vidros das montras das lojas em frente, que são grossos, tal não foi a trepidação”.

Também estes atentados foram reivindicados na manhã do dia seguinte pelas FP-25, que consideraram tratar-se de ações de “retaliação nos bens de um clã de latifundiários”. Segundo o comunicado que fizeram chegar a várias redações de órgãos de comunicação social em Lisboa, diziam ter sido “os trabalhadores da Reforma Agrária, organizados na FP-25”, a colocarem as cargas explosivas junto às residências.

O “DA”, por usa vez, referia que “só por mero acaso estas ações não fizeram várias vítimas entre a população, já que nas noites de sexta-feira é habitual vários grupos permanecerem até de madrugada nos locais onde os engenhos deflagraram”.

“Seria alguém de esquerda, coisas políticas, não sei, provavelmente, apesar de o meu pai ser uma pessoa extremamente pacífica, que se dava bem com toda a gente. Mas, aconteceu”, frisa Maria de Fátima Lampreia.

A 29 de janeiro, 10 dias depois das explosões nas duas habitações de Beja, dá-se novo rebentamento, desta vez em Castro Verde, junto ao muro do jardim da residência de José Francisco Colaço, que foi presidente da câmara municipal durante 12 anos, “em pleno regime fascista”. Segundo o que avançaram os serviços de relações públicas do Comando-geral da GNR, na ocasião, ao “DA”, “a bomba, de média potência, que deflagrou à 1:45”, provocou “danos no muro, destruiu o portão de entrada e estilhaçou alguns vidros da casa, não se tendo, porém, registado desastres pessoais”. A explosão “provocou, entretanto, a projeção de um ferro de um gradeamento que foi atingir um cabo de ligação à antena (guia de onda) dos CTT de Castro Verde”. As FP-25 acabariam por reivindicar a autoria do atentado num telefonema feito para a ANOP.

Fernando Caeiros, à época presidente da autarquia, diz que, para além de José Francisco Colaço, na antiga praça Salazar (atual praça da Liberdade), viviam também o seu irmão, Álvaro Colaço, que lhe sucedeu nos destinos da câmara, e ainda “o dr. Camacho, conceituado médico”, cunhado dos primeiros e “presidente da Ação Nacional Popular [movimento político criado durante o Estado Novo por vontade de Marcelo Caetano, então chefe do Governo], embora não fosse ativista político”. “Eram os três vizinhos uns dos outros naquela praça. A bomba poderia ser para amedrontar qualquer um deles, mas sou levado a pensar que se dirigia mais ao dr. Camacho, porque escreveram-lhe algumas ameaças na parede da residência”.

Segundo o ex-presidente, “ficou-se com a ideia que aquilo tinha uma certa ligação a alguém muito do esquerdismo”. “Começaram a comentar que, se calhar, seria o grupo A, o grupo B, o grupo C, portanto, havia algumas pessoas da terra que estavam ligadas a estes grupos e que vinham cá, de quinze em quinze dias ou de oito em oito dias, ou coisa do género, e deu-se a coincidência de ser num dos fins de semana em que foram vistos por cá, foi só isso. Depois começaram a querer relacionar as pessoas com o assunto, não sei se tiveram alguma coisa a ver ou não, a verdade é que foi feita a investigação e ninguém foi bater à porta dessas pessoas”.

Fernando Caeiros adianta que as pessoas em questão “não tinham qualquer relação com Beja [e, eventualmente, com os atentados], quanto muito podia haver algum relacionamento de natureza política com gente que era do mesmo grupo que teria desencadeado estas ações, mas não é mais do que isso”. E conclui: “Aconteceu aquilo e ponto final, até porque daí não resultaram danos expressivos. Não sei se aquilo tinha intenção, tão pouco, de ferir alguém. Olhando para trás, [os rebentamentos] era um bocadinho ‘moda’, uma ‘moda’ um bocadinho perigosa. Mas, claro, houve sítios onde teve resultados dramáticos”.As FP-25, que entre 1980 e 1987 terão sido responsáveis por 66 atentados à bomba e 99 assaltos a bancos, só viriam a cessar oficialmente as suas atividades em maio de 1991.

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