Diário do Alentejo

Invisíveis: sonhos

07 de fevereiro 2024 - 08:00
(... construí sonhos que a máquina da vida destruiu. R.

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Fiquemos a conhecer Rodrigo Martins.

 

 

Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa

Fotos | Ricardo Zambujo

 

De fratura em fratura, Rodrigo Martins  aprendeu desde cedo a viver num mundo  de adultos, longe do que sempre sonhou

 

“Construí sonhos que a máquina da vida destruiu”. É desta forma que Rodrigo Martins descreve os primeiros 21 anos da sua curta vida. Desde cedo aprendeu que ninguém é verdadeiramente dono de nada e que, por mais que se pense o contrário, nada é garantido. Descobriu pelas suas vivências que o ser do mesmo sangue não é sinónimo de ser família e que a vida, e o sucesso da mesma, é construída tendo como base o amor-próprio. De fratura em fratura, de desgosto em desgosto, a história de Rodrigo é feita de peças de puzzle que, por acasos, se foram perdendo e encontrando. Peças colocadas em sítios errados, pressionadas e partidas por força da insistência, por um momento, e desta vez, para que tudo desse certo. Que os sonhos resultassem. Que a vida fosse menos dura, menos difícil.

 

A infância sofrida

 

Rodrigo é o mais novo de seis irmãos. Cresceu num ambiente familiar conturbado, em que o álcool e as agressões eram marca assente nos seus dias. O pai, trabalhador independente e dono de um estabelecimento, em Silves, trabalhava no transporte de pão e bolos e, por vezes, quando chegava a casa depois de um dia a “beber”, agredia a mulher e os filhos. Antes de entrar na pré-primária os pais separaram-se, mas a situação de negligência física, emocional e escolar vivida na casa da mãe fez com que, um ano depois, quatro dos filhos, incluindo Rodrigo, na altura com seis anos, fossem institucionalizados em Alvor.

O tempo, daí em diante, passou a ser cada vez mais demorado. As horas não passavam, nem dentro nem fora da instituição, e na cabeça de Rodrigo foi-se materializando a ideia de que a vida não lhe seria fácil. “Na escola era aquilo que é habitual quando veem alguém que é diferente, não conseguem aceitar. Era muitas vezes gozado por estar numa instituição, por ter uma incapacidade de 60 por cento em termos psicológicos, por a minha família ser pobre... Gozavam com tudo o que podiam, basicamente”.

Contrariamente ao que seria de esperar, Rodrigo nunca deixou de gostar de estudar e apesar do diagnóstico de transtorno do défice de atenção com hiperatividade (TDHA) empenhava-se para “tirar notas superiores” e afastar, assim, um novo motivo de chacota. Porém, se dentro das salas de aula o ambiente era controlado, o receio de ser olhado depreciativamente ou de receber um comentário maldoso aumentava com a aproximação do intervalo, optando, para se proteger, em “passá-los ao pé de funcionários ou de professores”.

A crueldade dos colegas, causada em grande parte pela imaturidade e pelo desconhecimento do peso de determinadas palavras e atitudes, foi deixando marcas. Aos poucos, diz, foi ganhando “uma espécie de trauma” em “estar com outras crianças e jovens” e começou a isolar-se, o que ainda hoje se mantém.

“A certa altura, na escola, quando estava a passear sabia, que cada pessoa estava concentrada na sua vida, mas como tinha aquele sentimento começava a sentir-me observado [e a achar que estavam a falar sobre mim] ”.

Quando atingiu a maioridade, em 2021, escolheu deixar a instituição. Ambicionava ganhar a sua independência, regressar para junto da sua família e continuar os estudos, mas a vida trocou-lhe as voltas. “Tive ansiedade de querer liberdade, mas acabei por me dar mal”.

 

As amarras de um novo ciclo

 

No dia em que saiu do lar de acolhimento, com 50 euros oferecidos pela própria instituição, uma das irmãs deu-lhe boleia até à casa da mãe. Quando chegou percebeu que esta “não estava em condições” para o receber e durante “algum tempo” andou “a saltar”, sem residência definida, entre “casas de irmãos, amigos, conhecidos e desconhecidos”.

“O teto é de pladur e está a cair, é uma casa térrea e se formos ver o quintal tem uma tulha de sucata. A minha mãe é acumuladora, está a passar de carro, vê e traz, depois diz que vai vender à sucata para ganhar algum dinheiro, mas nunca chega a ir”.

Para ajudar a mãe, pouco tempo depois, Rodrigo regressou a casa. Por persistência da progenitora desistiu, no meio do 10.º ano, da escola e começou a trabalhar, tal como os seus irmãos. O ambiente em casa passou a ser tenso e as discussões diárias. Rodrigo não percebia a razão de algumas poupanças que a mãe fazia, como o porquê de só haver permissão para se “dar um banho por semana” e “mal lavar a roupa” e começou a questioná-la. A tensão aumentou e, pela primeira vez, Rodrigo foi expulso de casa.

Embora falador, é nesta parte da história que pouco tem a dizer. Magoa-o remexer em sentimentos que, apesar de estarem organizados, estão longe de cicatrizar. As pausas, como que a recompor acontecimentos na sua mente, dão lugar a sorrisos subtis de resignação. De olhos postos no chão conta que conseguiu restruturar a sua vida em Vila Real de Santo António, numa comunidade semelhante à da Cáritas Diocesana de Beja, “mas...”. Há sempre um “mas”.

“Arranjei um apartamento em Portimão, um T0, por 350 [euros], estava a trabalhar e efetivo numa cadeia de restauração de fast food e a receber à volta de 800 ou 900 euros. Estava com uma vida estável, mas, depois, a minha mãe... Quer dizer ,ela quando me pôs na rua desapareceu por dois anos e depois ligou-me a pedir desculpa pelo que tinha feito, a querer fazer as pazes comigo e a pedir para voltar para casa. E eu voltei”.

Rapidamente percebeu que não tinha tomado a melhor decisão. O “ambiente de paz” não durou mais do que “duas ou três semanas” e, sem se aperceber bem como, voltou a estar na rua outra vez. À semelhança do que já tinha acontecido, passado alguns dias o ciclo repetiu-se. Um telefonema, um pedido de desculpas e o voltar de Rodrigo para casa. “Voltei a estar nesta situação”, diz, conformado.

O passado dava sinais de que a qualquer momento, após outra discussão, o cenário iria repetir-se. Sem grandes surpresas, Rodrigo voltou a ser expulso de casa. “Agora voltámos a discutir, porque eu trabalhava na agricultura, em Silves, e a minha mãe queria o meu dinheiro todo e eu não o queria dar...”

Um e outro recomeço

 

Era perto das 20:00 horas, num início de noite em finais de setembro ou primeiros dias de outubro, Rodrigo não sabe precisar. Lembra-se que se levantava um ligeiro nevoeiro e que a chuva teimava em querer começar a aparecer quando, mais uma vez, ficou na rua. Sozinho, sem ninguém próximo a quem pedir ajuda para pernoitar, a experiência de quem conhecia de perto os passos que estavam por vir fez com que entrasse em contacto com a linha nacional de emergência social. Ainda antes de lhe atenderem a chamada, Rodrigo já sabia o que lhe perguntariam e, consequentemente, que possíveis respostas lhe dariam a escolher. Com disponibilidade imediata estavam as comunidades de Portimão, Lisboa, Évora e Beja, sendo nesta última que recairia a sua preferência, simplesmente, porque sempre ouvira dizer “que as rendas eram mais baratas”. “Por isso, decidi vir e fazer aqui a minha vida”.

A logística da hora impossibilitou que a Cruz Vermelha Portuguesa fizesse o transporte de imediato e, por isso, Rodrigo foi encaminhado para a esquadra da polícia local. “Fiquei com os agentes durante a noite. Vi televisão, conversei e, depois, como os supermercados já estavam fechados, fomos até um restaurante de fast food e os próprios agentes ofereceram-me o jantar para eu não estar a noite toda sem comer”, sorri

“E é assim, esta já não é a primeira vez que a minha mãe me mete na rua, esta é a terceira. Além dos 11 anos na instituição, já estive em Vila Real de Santo António, Faro, Lagoa, Lisboa... já percorri vários sítios e até agora tem sido difícil ficar em algum”.

O sentimento de percorrer “meio mundo” e de não pertencer a lado nenhum entristece-o. A ironia da vida mostrou-lhe, novamente, que quando os seus lhe voltam as costas o desconhecido dá-lhe as mãos. Mais uma vez, assim como a vida o tem habituado, regressou a uma instituição social. Para recomeçar. Para tentar de novo. Para tentar inverter o ciclo que o teima em seguir.

 

“Às vezes os sonhos têm de ser adaptados à realidade”

 

Está há cerca de quatro meses na Cárita Diocesana de Beja, depois de ter ficado em situação de sem-abrigo, e, por isso, foi o último a integrar os laboratórios artísticos da cooperativa cultural Chão Nosso. Embora se pensasse que o seu passado o fizesse ter uma atitude distante e retraída quanto ao grupo e ao próprios mediadores do projeto, talvez o facto de ser o mais novo fez com que se libertasse e ficasse conhecido como o “rapaz terrível dos abraços, afetos, pontual, assíduo, empenhado nos processos, disponível para aprender, arriscar e, se saísse mal, repetir e sempre a dar à língua como se o falar fosse uma maneira de ele se organizar eternamente”, diz Cristina Taquelim, uma das mediadoras, na área da narração e da escrita, da Chão Nosso.“É muito interessante perceber que o Rodrigo é um dos miúdos com maior nível de escolaridade, com alguma experiência neste tipo de coisas do desenhar e do pintar que transportava da sua vivência escolar e que se colou na escrita, nas obras que fez de uma forma muito fluida”, recorda.

Dos três laboratórios artísticos – “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração”, “Click – Narrativas Visuais” e “Insilenciáveis – Narrativas de Memória” – foi neste último, da sua responsabilidade, que Rodrigo mais se destacou. À semelhança do que fez com os restantes participantes, entregou a Rodrigo um caderno para que, fora dos laboratórios, este pudesse “ir escrevendo” e refletindo e de forma, fácil, minuciosa e descomplicada. O jovem escreveu sobre a sua “história pesada e difícil” com “uma naturalidade de como quem estivesse a comer amendoins”.

“A peça de destaque do Rodrigo é uma máquina de moer amêndoas que ele começou por olhar para ela e pensar que tinha tantos sonhos na cabeça e essa máquina, a máquina da vida, destruiu-os. Esta ideia vinha escrita e é muito violento [ler] algo assim”, conta a mediadora.

Daí começou o processo de “trabalhar que sonhos eram estes, que narrativas eram estas e que histórias eram estas”, e fazê-lo olhar de forma diferente para esta “máquina que destrói sonhos e que os transforma em lixo”.

O primeiro impacto, de alguém que está habituado a que nada seja como idealiza, é que não há maneira de inverter este mecanismo, porém, assim como “na vida real”, por vezes o necessário é olhar para os acontecimentos de uma outra forma.

“Depois de muitos dias com esta imagem na cabeça, fiz o Rodrigo olhar para a máquina ao contrário e é assim que nasce a peça final da exposição, uma máquina que se pode ler de duas maneiras. Num sentido ela transforma os sonhos em desperdício, noutro ela transforma o desperdício em sonhos e isso era preciso deixar em aberto. Ele tinha de perceber que é possível a mesma máquina fazer coisas diferentes, [porque] nós não estamos condenados a transformar sempre os nossos sonhos em lixo, também é possível que do desperdício e do que resta transformarmos em sonhos”, diz.

No tempo em que esteve nos laboratórios, ainda que de forma inconsciente, foi resolvendo alguns conflitos interiores. Foi percebendo que, “apesar de querer tudo para ontem”, tudo tem o seu tempo e que ninguém está condenado ao fracasso. Começou a compreender que por tentativa e erro as peças do puzzle da sua vida, com a tutoria certa, podem ajustar-se e que há “esperança”.

“O Rodrigo fez um livro, [intitulado O Percurso], com a história da sua vida, em que diz muito claramente o que lhe aconteceu, mas que também fala de esperança e de organizar a sua vida. E é bonito nós termos uma experiência artística que possibilita ao sujeito o soar dessa esperança, dessa vontade de fazer”, realça a também psicóloga de formação.

Para Rodrigo, os dias passados nos laboratórios foram “uma experiência positiva”, não só pelas aprendizagens, mas, sobretudo, pela forma como tudo se construiu. “Quando cheguei [aos laboratórios] não consegui [expressar-me], sentia-me nervoso, porque sou, em termos de relações, muito tímido. A Cristina [Taquelim] foi muito importante, porque, para além do trabalho de criação na área dela, quando estávamos a trabalhar pegava naquela pessoa que estava a sentir-se pior e ia ter uma conversa à parte, no sentido de apoiar. E isso é bom”.

O projeto artístico, em parceria com a Cáritas Diocesana de Beja, segundo Cristina Taquelim, surge com o propósito de, através da arte, trabalhar ferramentas e competências “que estavam adormecidas ou latentes” neste público específico e fazer com que as transportem “para o mundo real, para a vida e para a sua história”. No caso de Rodrigo há algo que esta experiência artística o fez entender, “que às vezes os sonhos têm de ser adaptados à realidade e/ou atrasados”, mas que são possíveis.

“Acredito que ainda é possível inverter a rotação desta máquina que é a vida. Fazer dos destroços da minha história uma nova história e novos sonhos”.

O Percurso, de Rodrigo Martin

 

“Uma coisa que me disseram é que às vezes os sonhos têm de ser adaptados à realidade e/ou atrasados”.

Rodrigo Martins

 

“O Rodrigo é um miúdo [que está] sempre a dar à língua como se o falar fosse uma maneira de ele se organizar internamente”.

Cristina Taquelim

Repensar o futuro

 

Atualmente, Rodrigo Martins encontra-se na Comunidade de Inserção (CI) da Cáritas Diocesana de Beja, depois de, numa primeira fase, ter estado no Centro de Alojamento de Emergência Social (CAES).

Aquando da chegada, descreve Palmira Piriquito, diretora técnica da CI, era um jovem “que só fazia asneiras”, uma vez que não estando medicado o seu pensamento era “muito rápido”. Ao longo dos últimos meses, e com uma forte influência dos laboratórios artísticos da Chão Nosso, tem “tido uma evolução positiva”, encontrando-se “estável, dentro da instabilidade”.

Ainda que Rodrigo ambicione concluir o 12.º ano, tirar uma formação na área da eletricidade e entrar no mercado de trabalho, a responsável admite que, neste momento, o jovem “não tem capacidade de atenção para estar numa sala de aula durante muito tempo seguido” e que, por isso, “aquilo que ele ambiciona não é, na realidade, aquilo que consegue fazer”.

De acordo com o departamento de Psiquiatria, onde é seguido pelo supervisor e médico psiquiatra da CI, Rodrigo Sousa Coutinho, a resposta onde se encontra atualmente “pode não ser a mais indicada” e, por isso, neste momento, aguarda-se a sua transferência para uma “instituição de ajuda para a vida autónoma”, em Castro Verde.

“Mas essas coisas levam muito tempo e enquanto não acontecem ele vai ficando connosco. Se ele estabilizar, enquanto não mudar [de resposta], vamos propor-lhe uma formação profissional adequada, ou seja, há um projeto que vai acontecer, sem dúvida, só ainda não aconteceu porque o Rodrigo não está estável”, adianta a técnica.

Perante a sua personalidade, e tendo em conta o défice cognitivo que o acompanha, o jovem algarvio precisará sempre de “colo” e de “tutores de confiança e credíveis para o irem ajudando a guiar o seu projeto de vida”.

Ao nível da reconciliação familiar, Palmira Piriquito afirma que “a figura materna é desestabilizadora e há uma figura paterna a quem, de alguma maneira, ele vai ligando e até com quem tem, atualmente, uma boa relação”, mas, para já, e enquanto os técnicos não virem benefícios para a tranquilidade do Rodrigo, não está prevista. “Não quer dizer que não o façamos em determinadas situações, [encontrar pessoas da família dos utentes], mas primeiro preferimos estar com a pessoa e ouvir a versão dela. [No caso do Rodrigo], só vamos fazer uma intervenção ao nível familiar se ele autorizar, tiver necessidade disso ou se nós, em conjunto com o próprio, considerarmos que aquela figura é importante para ele”, realça.

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