Diário do Alentejo

Ezequiel Sousa fez parte da produção do filme “Restos do Vento”, de Tiago Guedes

13 de outubro 2023 - 10:50
Um, dois, três… ação!
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Conhecido na cidade de Beja como “Sousa dos Cães”, Ezequiel Sousa é hoje bem mais do que um simples treinador de obediência, socialização e competição. Tanto na sétima arte, onde tem feito parte de grandes elencos cinematográficos sem nunca aparecer no grande ecrã, como fora dela, entrega, de olhos fechados, o seu trabalho nos “companheiros de quatro patas”. O “Diário do Alentejo” dá a conhecer o antigo militar da Força Área que esteve por trás da famosa matilha de “Restos do Vento”.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Ainda pouco passou das 05:00 horas quando Ezequiel Sousa, mais conhecido como “Sousa dos Cães”, abre o primeiro portão. Do outro lado, como já vem sendo hábito, estão dois olhos esbugalhados e uma cauda a abanar de excitação. Em tempos, a sua figura foi desconhecida naquele quintal, porém, agora, a forma como é recebido é sinal da amizade que se criou. Por enquanto, os treinos funcionam só a dois.

“Habitualmente vou à casa das pessoas buscar os cães, percebo antes qual será a minha intervenção, se é só o ensino básico da obediência, [como] o ‘senta’, ‘deita’, ‘vem cá’ ou ‘fica’, ou se é também o problema da socialização”, começa por explicar ao “Diário do Alentejo” (“DA”) o treinador. “Trabalho a obediência básica do andar ao lado, de não dar esticões e de não passear o dono, e quando esse trabalho já está mais ou menos feito com o cão é que incluo o dono, porque, no final, o cão já sabe e o dono só precisa de compreender qual foi o meu tipo de treino”.

Diariamente, trabalha com 12 a 14 cães, juntando-se, ao fim de semana, mais uma dezena de “fiéis de quatro patas” nos treinos gratuitos.

“Ao fim de semana fazemos socialização em movimentos e parados. Estamos todos reunidos em roda, os cães ficam todos a olhar uns para os outros e há um que sai e vai dar a volta à roda e os restantes têm de ficar sentados. A ideia é que não vão atrás uns dos outros. Aos poucos passamos à fase do ‘fica’, em que o dono manda o cão ficar e é o dono que dá a volta à roda e que vai lá ter. O que acaba por acontecer é que as pessoas começam a ganhar confiança, porque percebem que os seus cães conseguem fazer as coisas tal como os outros”, esclarece.

Ao “DA” conta que, “desde sempre”, viveu e trabalhou rodeado de cães. Em criança, ainda antes de entrar para a escola primária, recorda-se de, com um colega, apanhar os cães dos vizinhos, leva-los para casa e ensinar-lhe o pouco que sabia. Mais tarde, em 1997, enquanto militar da Força Aérea na Base n.º 11, em Beja, em conjunto com alguns colegas e amigos, decidiu criar o Clube Cinófilo do Alentejo, cujo objetivo passava, precisamente, por “ensinar as pessoas a treinar cães, a resolver problemas de socialização e obediência e, em simultâneo, a quem quisesse dedicar-se ao desporto”, nomeadamente, nas modalidades de agility, obediência e pastoreio.

 

LUZES, CÂMARA, AÇÃO… A sua paixão e a ligação fácil que cria com os “fiéis amigos de quatro patas” tem permitido que Ezequiel conheça e experiencie um outro mundo, o cinematográfico, e que, muitas vezes sem aparecer no grande ecrã, seja peça chave no sucesso de alguns filmes. Em 2006, enquanto treinador canino, participou no filme “Body Rice”, do realizador português Hugo Vieira da Silva, tendo repetido a façanha, em 2018, em “Raiva”, de Sérgio Tréfaut, onde fez ainda de figurante, e mais, recentemente, em “Restos do Vento”, de Tiago Guedes.

“O ‘Restos do Vento’ é o filme que tem dado mais nas vistas, porque é o que tem mais cães. No início, na reunião que fiz com o Tiago Guedes, via Whatsapp, para perceber do que é que tratava o filme, ele chamou-me muito a atenção para o facto de os cães serem parte primordial, [sendo que] compõem a personagem, mas fazem muito parte da história”, revela.

Tendo em conta o contexto do filme, segundo o treinador, era necessário uma matilha de cães “que se dessem bem e que andassem em liberdade juntos” e, para tal, era impossível formar-se uma “indo buscar um cão à casa de uma pessoa e outro à de outra”. Desvanecida a ideia de pedir à associação Cantinho dos Animais de Beja, uma vez que “são cães com muitos traumas e fechados”, a solução foi encontrada na quinta, em Vidigueira, da encenadora Gisela Cañamero, que acolhe animais abandonados.

“A Gisela disse-me que não seria fácil, porque havia alguns cães problemáticos, mas eu decidi arriscar. Trabalhar com cães nem sempre é como nós queremos, é como os realizadores dizem, com os animais e com as crianças temos de esperar para ver o que é que eles nos dão para podermos compor a personagem”, afirma.

Após inúmeros envios de fotografias e vídeos para a produção, de forma a se selecionar entre 12 e 14 cães, Ezequiel diz ter sido fundamental a vinda até à quinta de Albano Jerónimo, ator que iria contracenar mais vezes com a matilha, para perceber se seria possível. “Conseguimos meter o Albano, num dia de calor enorme, sentado no chão da quinta com os cães todos à volta a brincar. Aí achámos que havia química, havia matilha e que dava para fazer o filme”, conta.

Desse dia em diante, refere o antigo militar, começou a trabalhar-se, ainda na quinta alentejana, “coisas básicas”, com recompensa e sem trelas e coleiras, uma vez que “a ideia era serem cães abandonados/vadios”. “Primeiro começámos por trabalhar coisas básicas com recompensa, mas depois acabou-se, até porque as recompensas iriam fazer com que eles não fossem cães e que andassem só atrás do Albano a pedir, e a ideia é que fossem situações naturais, [com] eles a desaparecem no meio do mato, depois a aparecem na estrada outra vez, com um a subir umas escadas ou com outro a ir cheirar o caixote do lixo, mas tudo naturalmente”, realça.

A particularidade das gravações serem na serra da Malcata, nos concelhos de Penamacor e Sabugal, “por vezes durante a noite, totalmente às escuras, sem luzes e sem nada”, fez com que Ezequiel tivesse algum cuidado nos ensinamentos, uma vez que havia a possibilidade de algum cão fugir. O que o treinador revela, entre risos, ter acontecido.

“Havia cães de caça, estávamos a gravar no meio da serra e assim que lhes dava algum cheiro de caça tentavam logo ir embora. Um dia, um desses [cães] mais ligados à caça fugiu-nos e durante duas horas não soube onde é que ele estava, porque tinha de estar a acompanhar os outros na gravação. Eu tinha quase a certeza de que ele não iria muito longe, mas foi complicado”, recorda. “Depois, quando o Tiago disse ‘corta’ subi a serra e no vale a seguir lá estava ele, todo contente a caçar”.

Para Ezequiel, a facilidade com que os 12 cães, de todos os portes, “desde rafeiros alentejanos até cãezinhos muito pequeninos”, estiveram durante as gravações do filme deveu-se, sobretudo, à singularidade de serem animais abandonados.

“A atenção e a possibilidade que tinham de estar com toda aquela gente davam-lhes muito e, por isso, adaptaram-se muito facilmente. Nós treinávamos antes das gravações onde é que cada cão devia estar e depois bastava dizer-lhes cada um ao seu sítio e eles lá iam. Parecia mesmo que tinham lido o guião e estavam mesmo a interpretar”, comenta com um sorriso.

A ligação que foi criada entre a matilha e o ator principal, principalmente, com a cadela Moly, facilitou muito todo o trabalho de Ezequiel e deu frutos no resultado final. “O Albano é um ator do outro mundo e conseguiu criar uma ligação enorme com eles. Basta dizer que nós podíamos chegar à 01:00 ou 02:00 horas de uma filmagem e ele e o Tiago estavam disponíveis para ir dar comer e passear os cães com a roupa de cena, portanto, chegávamos tarde depois de um dia de trabalho e eles só iam descansar depois de tratarmos deles”, relembra. E acrescenta: “Eu chegava a Meimão [aldeia no concelho de Penamacor onde foi feita a maioria das gravações] soltava os cães e ia com o telemóvel atrás da Moly a filmar o que é que ela ia fazer. Então cumprimentava toda a gente e depois descobria as escadas onde estava a maquilhagem, descia e o Albano estava lá concentrado com os fones na cabeça e ela metia-se em duas patas e com uma delas batia-lhe. Criaram ali uma ligação muito especial”, confessa.

Quanto ao reconhecimento público feito por Albano Jerónimo, na 27.ª Gala dos Globos de Ouro aquando do seu discurso após vencer a categoria de melhor ator em cinema com a sua personagem de “Restos de Vento”, Ezequiel sente-se agradecido.

“Este prémio é de facto uma conjugação de toda uma equipa técnica e de uma produção. Obrigada aos meus queridos colegas atores que me ajudaram a estar aqui hoje, ao Paulo Branco, ao Tiago Guedes, à Rita na maquilhagem, à Natália nos cabelos, ao Ezequiel que me deu um novo alfabeto para poder comunicar com a família canídea presente no filme…”, agradeceu, no passado dia 1, o ator.

Ezequiel diz ao “DA” que, normalmente, os reconhecimentos para aqueles que nunca aparecem à frente das câmaras são feitos de forma singela e sem nomes, porém, desta vez isso não aconteceu.

“Há muita gente a fazer um trabalho espetacular, a trabalhar muito bem e isso é-lhes reconhecido particularmente, mas nunca lhes é dado publicamente, mas eu tive essa sorte. O Albano [Jerónimo] é uma pessoa com um coração enorme e só alguém como ele é que se iria lembrar na hora de receber um Globo de Ouro de alguém que estava lá, mas não estava, porque o importante era o filme, os atores e os cães. Para mim foi mesmo muito bom”, afirma, de sorriso no rosto, enquanto confirma que desde então tem recebido “um turbilhão de mensagens e telefonemas” a parabenizar.

 

UM OUTRO LADO SOCIAL

 

Longe do grande ecrã e regressado às planícies douradas do Alentejo o “Sousa dos Cães” usa ainda este seu fascínio numa outra vertente, ou seja, a de criar bons momentos e novas funcionalidades entre cães e pessoas com deficiência. Inicialmente, começou, a medo, a trabalhar com este público-alvo no projeto “Fiel”, em Évora, onde rapidamente percebeu “a evolução das pessoas e o que um cão lhes traz à vida”.

“Por muito que as pessoas/funcionários tentem, o que acontece muito é que quem tem uma deficiência não tem motivos para fazer outras coisas e, normalmente, os cães são sempre um bom motivo para se modificar algo nas suas vidas”, explica.

Em tempos, o trabalho que desenvolveu na Cercicoa, em Almodôvar, de apoio à vida independente, ainda hoje lhe traz boas memórias, principalmente, num caso em específico em que “um dos rapazes [com quem trabalhou] não andava quase nada, porque tinha sofrido um acidente de mota, fazia dois ou três metros apenas até ao carro”. Quando Ezequiel deixou a instituição o jovem “fazia 12 quilómetros a pé”.

“Tinha uma golden retriever e ela nunca o largava, mesmo com ele a andar muito devagarinho. Se eu tivesse que ir mais rápido ela ficava sempre com ele a incentiva-lo a mexer-se, porque ele parava e a cadela andava um bocadinho para a frente e esperava por ele, ele chegava junto dela e ela andava mais uns metros e esperava por ele novamente, e assim consecutivamente. A cadela obrigava-o quase a andar atrás dela e isso ajudou bastante”, esclarece.

Atualmente, além de continuar este trabalho de apoio à vida independente no Centro de Paralisia Cerebral de Beja, desenvolve também um trabalho conjunto com o Cagia – Canil/Gatil Intermunicipal da Resialentejo e a Cercibeja, em que os utentes são os responsáveis por cuidar e brincar com os animais.

“A ideia é juntar pessoas com deficiência, que precisam de sair dos espaços delas, e dar-lhes uma oportunidade de brincarem e de cultivarem um bocadinho o contacto com o cão. O que eu quero é que vão buscar o cão ao canil, o levem para um espaço, que brinquem com ele e o ensinem. Juntamos o útil ao agradável e conseguimos ter ali as duas respostas, isto é, os cães que precisam de socializar com pessoas, porque foram abandonados e estão traumatizados, e pessoas que precisam também de ter contacto com animais e fazer outras atividades”, completa.

 

CAMPEONATO DO MUNDO DE AGILITY 2024 SERÁ EM BEJA

O trabalho que Ezequiel Sousa tem feito, através do Clube Cinófilo do Alentejo, ao longo dos anos, permitiu que a cidade de Beja recebesse a “bandeira da organização” do Campeonato Internacional de cães sem raça definida (IMCA) e do Campeonato do Mundo de Agility para Deficientes (PAWC) no próximo ano. Segundo o treinador, “se tudo correr bem” as competições deverão ter “entre 200 a 400 concorrentes”, totalizando “um movimento de, pelo menos, 1000 pessoas dentro da cidade” durante esse período. A ideia é que parte destes grupos fique alojada nos hotéis locais e que os restantes possam estacionar as suas autocaravanas dentro do Parque de Feiras e Exposições Manuel de Castro e Brito, local onde decorrerá o evento. Pessoalmente, o “Sousa dos Cães” garante que esta é “uma grande vitória”, porque vem mostrar que “as pessoas podem pensar mais à frente e divertirem-se, apesar das dificuldades que têm”. Entre amanhã, sábado, dia 14, e domingo, o Clube Cinófilo do Alentejo receberá a 7.ª e a 8.ª provas do Campeonato Nacional de Agility, uma forma de “testar” se o picadeiro da ACOS pode vir a ser uma solução para o campeonato de 2024.

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