Diário do Alentejo

Sobreviver

29 de setembro 2023 - 10:00
Metade dos trabalhadores portugueses vive em condições de precariedade salarial, revela estudo europeu
Ilustração | Susa Monteiro/ArquivoIlustração | Susa Monteiro/Arquivo

De acordo com o primeiro “Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade”, metade dos trabalhadores portugueses tem dificuldades, através do seu rendimento salarial, em fazer face às despesas mensais. Francisca Guerreiro, responsável pelo Gabinete de Ação Social da Santa Casa da Misericórdia de Beja, revela o “aumento significativo” de pessoas, a trabalhar, que procuram ajuda na instituição. Ana Matos Pires, diretora do Departamento de Saúde Mental e do serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, adverte para o incremento de comportamentos de risco que as dificuldades financeiras podem gerar. Jorge Simão e Maria da Conceição, dois dos cidadãos que se reveem no perfil deste estudo, ambos licenciados, a viver em Beja, confidenciaram ao “Diário do Alentejo” as agruras de viver em constante sobressalto económico.

 

Texto | José Serrano

 

“À noite, deito-me e não consigo adormecer, preocupado com a ‘ginástica financeira’ que tenho de fazer para conseguir pagar todas as contas do mês, triste por ter de abdicar de uma vida que não consigo ter”. A confidência é de Jorge Simão, de 43 anos, professor de artes visuais, com 20 anos de serviço, a exercer na Escola Básica 2,3 Mário Beirão, um dos estabelecimentos de ensino do Agrupamento de Escolas n.º 2 de Beja. O docente, nos quadros desde 2006, revê-se no perfil da metade monetariamente mais débil dos cidadãos do País, de acordo com o primeiro “Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade”, recentemente divulgado, que revela que “um em cada dois portugueses atualmente empregados sente que o seu salário não cobre todas as suas despesas”. O estudo, encomendado pela organização não-governamental francesa Secours Populaire Français e realizado pela empresa Ipsos, refere que a situação dos trabalhadores europeus é “muito preocupante, especialmente, em Portugal e na Sérvia”, uma vez que, atualmente, “ter um emprego não significa, necessariamente, ser capaz de sobreviver financeiramente”.

Uma constatação à medida do que sente, quotidianamente, Jorge Simão. “Tenho um emprego estável. O grande problema é que os vencimentos não acompanham o custo de vida. E estou a falar de uma profissão que, no panorama nacional, não é considerada assim tão mal paga. Existe é uma percentagem altíssima de impostos que nos leva grande parte do vencimento e que me deixa, dos 2100 brutos, com cerca de 1100 euros de ordenado líquido”. Um montante que se tem revelado dificilmente capaz de conseguir fazer face ao aumento generalizado do custo de vida, nomeadamente, à subida dos juros do crédito à habitação: “Há menos de dois anos, quando começou a escalada da Euribor, pagava ao banco, de empréstimo da casa, 260 euros. Neste momento, pago 800. E depois há que contar com as normais despesas fixas, a água, o gás, a luz, a gasolina, a televisão, a Internet, o condomínio, as compras do supermercado…”.

Para além de professor, Jorge Simão é, nas horas livres, artista plástico, o que lhe possibilita ter a sua pintura exposta numa galeria de arte, em Lisboa, permitindo-lhe daí retirar, pontualmente, “algum rendimento”, embora as vendas não sejam “avultadas, uma vez que o mercado de arte, em Portugal, é muito restrito”.

Assim, com o objetivo de poder acrescentar ao seu ordenado um pouco de folga orçamental, o professor, também ele coordenador do plano nacional das artes no agrupamento onde leciona, tem vindo a tentar acumular um outro serviço, ainda que, até à data, sem sucesso. “Propus-me dar aulas, em part time, no IPBeja [Instituto Politécnico de Beja] e em várias escolas profissionais, mas não tem aparecido nada que seja compatível com o meu horário de professor…”.

Por conseguinte, após ter, “praticamente, abdicado” da sua vida social, deixando de ir comer fora, sair aos fins de semana, fazer férias, viajar – “Conhecer mundo é tão importante e não o consigo fazer” – ou ir a algum evento cultural, “que implique pagar”, Jorge Simão transmite, pesaroso, a necessidade de solicitar ajuda familiar. “A situação, difícil, já não é de agora, já vinha da crise que se iniciou em 2008, mas neste último ano as coisas agudizaram-se muito, foram-se acrescentando dificuldades em cima de outras. Há muitos meses em que não consigo ter dinheiro para pagar todas as despesas e sou obrigado a recorrer à ajuda da minha mãe, que me dá esse socorro. Com a minha idade, e 20 anos a lecionar, estar dependente da minha mãe para pagar as minhas contas… uma pessoa sente-se mal”.

Esta assistência dos progenitores é, de acordo com Jorge Simão, habitual dentro da faixa etária e com habilitações literárias similares às suas. “Tal como eu, há muitos amigos meus, licenciados, a pedirem a ajuda dos pais. Acaba por ser uma situação recorrente, pois não conseguimos ser completamente autónomos”. Uma realidade, expressa pelo professor, que será, amiúde, ocultada: “Há muito embaraço em falar sobre o assunto. Mas eu vejo as angústias que colegas meus passam. Especialmente, os que têm filhos em idade de ir para o ensino superior, os preços dos quartos… passam-se dificuldades, mas evita-se que transpareçam para os outros, porque o ser humano é assim, quer mostrar sempre a sua melhor face”.

Pelo prazer que tem em adquirir conhecimentos, mas, sobretudo, com a perspetiva de ter mais hipóteses de lecionar no ensino superior, “que aí os vencimentos são mais interessantes”, Jorge Simão está a frequentar o doutoramento conjunto entre a Universidade do Porto e a Universidade de Lisboa em Educação Artística. “Somos apenas três doutorandos portugueses, todos os outros colegas são estrangeiros. O que me permite observar que, a nível salarial, com a mesma formação académica, os ordenados são díspares e que as condições, em Portugal, são muito precárias. Por exemplo, a colega holandesa, com o mesmo horário que eu e a lecionar a mesma disciplina, ganha cinco vezes mais. Temos um atraso muito grande em relação a outros países europeus, e com o imenso esforço ao nível da educação que o País tem feito, desde o 25 de Abril, não se pode continuar com esta política de salários baixos. A formação, como motor de mobilidade social, deve ser acompanhada de uma melhor remuneração e mais favoráveis condições de trabalho. Caso contrário, abalam todos, porque a malta mais nova, dos 45 anos para baixo, está toda com a corda ao pescoço”.

De forma visual semelhante, “a contar os cêntimos, até que se volte a receber novamente”, é como se expressa Maria da Conceição (nome fictício), de 29 anos, licenciada em Comunicação, para descrever as dificuldades financeiras que atravessa.

“Eu e o meu companheiro, que está a acabar uma licenciatura na área da Engenharia Agronómica, trabalhamos em empresas privadas ligadas à agricultura na região de Beja. Ganhamos, salários brutos, um bocadinho mais do que o ordenado mínimo, mas, com os descontos que fazemos, levamos para casa, no final do mês, os dois juntos, cerca de 1400 euros. É muito difícil viver”, sublinha.

Ainda que possam contar com a boa vontade da senhoria da casa onde moram – “Temos a sua compreensão quando há um mês em que não conseguimos pagar a renda, e pagamos no mês seguinte” –, as dificuldades financeiras que estão a sentir acentuam agora mais a preocupação do casal, pais, pela primeira vez, desde há quatro meses.

“O supermercado está caríssimo. No ano passado, com 100 euros conseguíamos comprar muita coisa e neste ano não dá para quase nada, levamos meia dúzia de coisitas. Outra despesa enorme que temos é com a gasolina, que subiu imenso, porque eu tenho que me deslocar de carro para o trabalho e encho o depósito duas vezes ao mês e o meu marido partilha boleia, que está, naturalmente, mais cara”.

Sem a possibilidade de recorrerem, ainda que pontualmente, à ajuda económica de familiares, Maria da Conceição revela que para além do término do convívio social, que se revelou imprescindível, o custo de vida verificado desde o ano passado levou a que o casal tomasse medidas, até então, inusitadas. “Cortámos no peixe e na carne e no inverno não ligámos o aquecedor, para poupar. Claro que neste ano, com a nossa filha, não vamos poder restringir a temperatura da casa. Mesmo assim, com todas estas contenções, chegamos ao fim do mês sem nada”.

Maria da Conceição manifesta-se “profundamente desiludida” com o seu país. “Quando tirei o curso pensava que teria mais facilidade em ter um emprego estável, em que ganhasse bem. Mas não”. E acentua o desapontamento: “Portugal devia aumentar os ordenados, diminuir os descontos fiscais e valorizar mais os empregados que tem. Tenho colegas meus, licenciados, a trabalhar nas caixas dos supermercados”.

Com a licença de maternidade a chegar ao fim, Maria da Conceição reiniciará o seu trabalho em outubro, o que implica, “necessariamente, mais uma despesa, com a creche da bebé”, reforçando, no casal, a perspetiva de deixar o País, com rumo à Suíça ou ao Canadá. “Emigrar está presente nas nossas conversas do dia a dia. Por aqui não se valoriza o trabalho e vemos os preços a aumentar de uma forma que a gente nem percebe. A vida aqui é muito difícil e, em princípio, para o ano, vamos tentar abalar”.

Acerca da precariedade económica dos trabalhadores portugueses, em particular, daqueles que vivem na região, a responsável pelo Gabinete de Ação Social da Santa Casa da Misericórdia de Beja (SCM Beja), Francisca Guerreiro, revela que, “nos últimos tempos”, tem observado “um aumento significativo” no número de pessoas que procura ajuda na instituição. “Muitas delas, surpreendentemente, têm rendimentos provenientes do seu trabalho, mas, ainda assim, enfrentam grandes dificuldades para sustentar as suas famílias”, com os seus salários a revelarem-se insuficientes para cobrir os gastos mensais do agregado familiar, face “aos aumentos constantes dos preços dos produtos de consumo, de todas as despesas relacionadas com a habitação, dos combustíveis e de outros custos do dia a dia”. Situações que evidenciam, refere Francisca Guerreiro, que, “mesmo acima do limiar da pobreza estabelecido pelas normas e regulamentos, há famílias que lutam, diariamente, para satisfazer as suas necessidades básicas”.

Em termos estatísticos, a SCM Beja, registou, do primeiro para o segundo semestre de 2022, um aumento de 25 por cento no número de agregados familiares/indivíduos que procuraram assistência na instituição, “em grande medida, focada na distribuição de produtos alimentares”. Tendência que, em 2023, “continua a aumentar, com um acréscimo de 25 por cento no número de famílias/indivíduos acompanhados durante o primeiro semestre deste ano, em comparação com o final do ano anterior”. Estes números evidenciam, diz Francisca Guerreiro, que, “para muitas famílias e indivíduos”, é cada vez mais difícil colmatar as necessidades básicas e que “a capacidade de viver ‘confortavelmente’ está a ser substituída pela mera sobrevivência – é esta a triste realidade que muitas pessoas enfrentam”.

Dos agregados familiares que a SCM Beja auxilia, nomeadamente, através do programa Apoiar Famílias, criado em 2016 em colaboração com o Banco Alimentar Contra a Fome de Beja, 40 por cento incluem indivíduos que estão empregados. Percentagem que poderá estar aquém da real situação de debilidade económica que os cidadãos do território enfrentam, uma vez que, considera Francisca Guerreiro, existirão “muitas pessoas que, embora necessitem de apoio, hesitam em procurá-lo”, devido a sentimentos de vergonha e estigmatização. “A ideia de reconhecer que, apesar do esforço e trabalho árduo, ainda assim, não se consegue satisfazer as necessidades básicas, é profundamente desafiadora”. Além disso, diz, “no contexto de uma comunidade onde todos se conhecem, pedir ajuda pode ser ainda mais difícil. A preocupação com o que os outros vão pensar e o medo de serem julgados podem ser obstáculos significativos”, enfatiza a responsável da SCM Beja.

Desta forma, Francisca Guerreiro, realçando o empenho da instituição “em oferecer ajuda” às famílias necessitadas, “procurando formas de aliviar o fardo que enfrentam”, considera fundamental, que “todos nós estejamos mais atentos e que cultivemos a empatia em relação às dificuldades que os outros enfrentam, mesmo que não as expressem abertamente. É importante lembrar que as circunstâncias de vida podem mudar rapidamente e que qualquer um de nós pode vir a encontrar-se numa situação de necessidade”.

Circunstâncias que, pelas provações que determinam, espelham em lares diferentes a forma como o dia acontece, pois também as noites de Maria da Conceição, à semelhança das de Jorge Simão, são, repetidamente, de insónia, matutando nas contas a pagar, nas despesas possíveis de cortar. “Sei que há pessoas que estão pior do que eu, mas é complicado…”.

 

Precariedade salarial e saúde mental

Ana Matos Pires, diretora do Departamento de Saúde Mental e do serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), esclarece que a degradação dos fatores sociais e económicos “determina um agravamento de doenças mentais já existentes, o eclodir de novos diagnósticos e a possibilidade de um aumento de reações de ajustamento, com sintomas ansiosos e depressivos que, mesmo não configurando quadros clínicos formais, determinam maior disfuncionalidade na vida de quem por eles está a passar”. Revelando o aumento, na Ulsba, de “pedidos de primeiras consultas de psiquiatria por parte dos cuidados de saúde primários”, embora ressalve não ter “dados fidedignos” para correlacionar esse facto com o incremento de obstáculos monetários, a psiquiatra considera que a inquietação e a tristeza que as dificuldades financeiras podem gerar, contribuem, “sem dúvida”, para o aumento de comportamentos de risco. “Na nossa região, preocupam-me, especialmente, o aumento do risco de suicídio e dos comportamentos aditivos de substâncias, das quais destaco o álcool, pela prevalência que tem na região, mas também outro tipo de adições, em particular, de raspadinhas, em linha com um estudo, recentemente, apresentado”.

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