Diário do Alentejo

Javalis

22 de setembro 2023 - 10:00
São mais do que seria desejável e provocam prejuízos a vários níveis. O Instituto de Conservação da Natureza e da Floresta tem um estudo e com base nele está a ponderar medidas para controlar a população
Foto | Ricardo Cortes WildscapeFoto | Ricardo Cortes Wildscape

Podem ser perto de 400 mil e são culpados de avultados prejuízos na agricultura e na caça, causadores de inúmeros acidentes rodoviários e transmissores de doenças e de agentes infecciosos resistentes a antibióticos. No final de maio, em Évora, durante a apresentação do Plano Estratégico e Ação do Javali, promovido pelo Instituto de Conservação da Natureza e Floresta e elaborado por especialistas da Universidade de Aveiro (UA), ficou “evidente” que “o território nacional continental apresenta uma população de javali sobreabundante, e que essa sobreabundância poderá ser particularmente relevante em áreas periurbanas e em áreas onde as culturas constituem um importante aporte alimentar”. As medidas para a correção desta realidade são poucas e passam, essencialmente, pelo controlo do número de indivíduos recorrendo aos caçadores, mas estes, são cada vez menos e menos motivados para a tarefa que urge realizar.

 

Texto | Aníbal Fernandes

 

O javali é um “problema económico, social, ecológico e sanitário”, reconhece, logo no início, o relatório final do Plano Estratégico e Ação do Javali (PEAJ) – elaborado por Rita Torres e João Carvalho, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar, da Universidade de Aveiro, e Carlos Fonseca, do Laboratório Colaborativo ForestWISE, da mesma academia – estudo encomendado pelo Instituto de Conservação da Natureza e Floresta (ICNF), apresentado no último dia de maio, em Évora, e que contou com a presença do secretário de estado João Paulo Catarino e do vice-presidente do ICNF, Paulo Salsa.

Segundo os investigadores, este trabalho vem “colmatar a lacuna” de um estudo detalhado e o sucesso da sua implementação visa “a valorização ecológica e económica da espécie, que consideram ser “o único meio possível para fazer face aos desafios ecológicos e sanitários emergentes”, nomeadamente, face à “recente expansão da peste suína africana na Europa, associada à importância económica e social da suinicultura e ao facto de o javali ser considerado um dos mais importantes reservatórios de doenças infeto-contagiosas”.

São apontados três grandes objetivos: o real conhecimento do número de indivíduos; a descrição e acompanhamento dos principais parâmetros fisiológicos e indicadores de condição física dos animais; e a avaliação do habitat e dos fatores que possam aumentar ou diminuir o impacto e dimensão dos prejuízos causados pela espécie. Com base nos dados recolhidos e validados serão definidos “planos e estratégias” para a “gestão sustentável e mitigação dos potenciais impactos negativos do javali”.

O estudo foi desenvolvido em 14 áreas piloto de todo o País, incluindo, no Baixo Alentejo, a Zona de Caça Municipal do Sudoeste Alentejano, a Zona de Caça Associativa do Vidigal, a Zona de Caça Associativa da Herdade de Casas Novas; e a Zona de Caça Municipal (ZCM) da Oliveirinha, com a colocação das câmaras que tiveram em conta a representatividade dos principais tipos de habitat em cada unidade de gestão.

Nas três primeiras zonas referidas, as 25 câmaras registaram, entre julho e outubro de 2022, cerca de 200 mil fotos, e detectaram 363 javalis solitários e 1559 em grupo; em igual número de pontos de recolha da ZCM da Oliveirinha, em 68 530 fotos foram detetados 1508 solitários e 2636 em grupo. No primeiro caso a densidade calculada de indivíduos por quilómetro quadrado é de 11, 63, enquanto no segundo caso é de 7,5. No final do processo de recenseamento o estudo apurou uma estimativa nacional de 277 385 javalis, podendo este valor variar entre os 163 157 e 391 612 exemplares.

“Além de promoverem o conflito entre as atividades humanas e o javali, a disponibilidade de recursos alimentares de origem antrópica, seja em áreas rurais, ou em áreas periurbanas, desempenha um importante papel na dinâmica populacional do javali”, lê-se no relatório que acrescenta que “a suplementação alimentar realizada com um propósito [caça] durante largos períodos do ano”, repercute-se “num aumento do número de crias por fêmea fértil, num aumento da percentagem de fêmeas gestantes e um incremento na taxa de sobrevivência dos listados e juvenis, o que se traduz no indesejável aumento da população de javali”.

Assim, a redução do acesso a alimentação suplementar, quer em espaços urbanos e peri-urbanos, ou disponibilizada quase ao longo de todo o ano (e.g. milho) é uma das medidas a considerar para se reverter a tendência crescente das populações de javali.

Segundo os dados disponíveis, a taxa de eliminação dos javalis através da caça cifra-se nos 10 por cento, o que, “nas condições ecológicas e sanitárias atuais da população de javali, insuficiente para controlar a população de javali e os seus impactos”. No entanto, o estudo refere que o aumento da taxa de extração em 20 ou 30 por cento em relação ao valor atual pode não ser suficiente para reverter a tendência crescente observada nas populações silvestres”.

Não obstante a caça não ser suficiente para assegurar o controlo das populações de javali, continua a ser o processo mais eficaz e disseminado. No entanto, são sugeridas algumas alterações na atividade cinegética, nomeadamente, “a limitação temporal da cevagem”. A realização de esperas noturnas é considerada um importante complemento e “o recurso a caçadores profissionais pode também afigurar-se como uma das alternativas para garantirmos um aumento da pressão sobre classes etárias e sexos específicos”.

 

ASSUNTO COMPLEXO

José Lopes Bernardino, presidente da Federação Alentejana de Caçadores (FAC), com sede em Beja, reconhece que o controlo da população de javalis é “tecnicamente um assunto complexo e difícil”, mas admite que “a caça e o abate seja a melhor das hipóteses” para o conseguir. A contribuir para o aumento do problema refere que “o tipo de agricultura, com grandes manchas de regadio”, constituem, por si só, “um maná para os javalis”.

 

Em conversa com o “Diário do Alentejo”, recorda que a primeira vez que viu um javali foi “há 45 anos”. “Nessa altura era uma novidade e todos os caçadores tentavam matá-los”. Entretanto, “diminuiu o apreço pela carne de javali” – que na verdade nunca se impôs na restauração – e, “agora, oferece-se e não há quem queira, sendo até potencialmente proibido”.

 

José Lopes Bernardino garante que os caçadores estão disponíveis para ajudar a resolver este problema, mas pede que “o Estado não os encoste à parede”, exigindo “procedimentos complicados e regras que impliquem o aumento das despesas”. Nesse caso, diz, “corre o sério risco de ficar com o problema nas mãos”. Quanto à profissionalização da atividade, diz ser uma caso a ver e a discutir.Mas também o setor agrícola tem uma palavra a dizer no que se refere à “praga” dos javalis. Francisco Palma, da Associação dos Agricultores do Baixo Alentejo (AABA), diz que dada a situação tem de se “encontrar maneira de criar equilíbrios” que estão em causa com o aumento da população de javalis.

Apesar de ser difícil quantificar os prejuízos – que podem oscilar muito, em função das culturas e da característica dos terrenos – o empresário refere ainda o impacto que têm no desaparecimento de outras espécies cinegéticas. “É necessário encarar o problema e não vacilar perante os “fundamentalismos na defesa dos animais”, conclui.

 

O QUE FAZER?

Com a intenção de saber quais as medidas que já estariam no terreno para fazer face ao aumento da população de javalis, o “Diário do Alentejo” contactou o ICNF. A entidade nacional responsável por este assunto disse-nos que “nos últimos três anos, o ICNF tem vindo a promover esforços no sentido de autorizar a possibilidade de correção de densidades desta espécie fora do calendário venatório, através das disposições contidas nos Editais de Correção Extraordinária da Densidade de Javalis, o que permite a qualquer entidade gestora de zona de caça, ou proprietários de terrenos que se localizem fora de concessões de Zonas de Caça, proceder ao abate de exemplares desta espécie, quer pelo método de espera, quer pelo método de batida”.

Esclareceram, ainda, que “a Direção Regional de Conservação da Natureza e Florestas do Alentejo tem manifestado disponibilidade em articular com as várias autarquias e demais intervenientes dos diversos serviços operacionais de responsabilidade civil, e Associações/Federações de caçadores” para defenirem “as ações que se revelem adequadas e necessárias à resolução do problema”.

Informam ainda que as medidas propostas que visam a redução da população de javalis e que resultaram do estudo efetuado pelos investigadores da Universidade de Aveiro “estão em avaliação com o envolvimento de várias entidades”.

O ICNF recorda que “o javali é uma espécie cinegética, para a qual a correção de densidades está prevista no artigo 113.º do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na sua redação atual. O n.º 1 do referido artigo refere “As populações de espécies cinegéticas podem, fora das condições regulamentares do exercício da caça, ser objeto de ações de correção quando tal seja necessário para prevenir ou minimizar a ocorrência de danos na fauna, na flora, nas pescas, nas florestas, na agricultura e na pecuária ou ainda para a proteção da saúde e segurança públicas.” Estando em causa a segurança de pessoas e bens, e de forma a prevenir a ocorrência de danos e a proteção da saúde e segurança públicas, a situação tem enquadramento nos termos do n.º 5 do artigo 113.º do diploma acima referido”.No dia 31 de maio, aquando da apresentação do estudo, em Évora, João Paulo Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza e Florestas, disse aos jornalistas que o Governo iria propor “o alargamento dos períodos de caça ao javali, praticamente para todo o ano”.

Na mesma ocasião, o vice-presidente do ICNF, Paulo Salsa, referiu que “a população de javalis estima-se entre os 300 mil e os 400 mil exemplares, tem uma taxa de crescimento muito grande e tem muito alimento disponível. Portanto, precisamos de reduzir esta população entre 10 a 20 por cento, nos próximos cinco a 10 anos”.

 

ACIDENTES RODOVIÁRIOS

Segundo dados apurados junto do Comando Distrital de Beja da Guarda Nacional Republicana, desde o início do ano, até ao dia 20 de agosto, foram registados 34 acidentes rodoviários com javalis nesta área de intervenção, menos quatro do que em igual período de 2022, ano em que aconteceram 55 casos no total. No entanto, estes são apenas os incidentes em que a GNR foi chamada a intervir. O “Diário do Alentejo” obteve testemunhos de “vítimas” deste tipo de acidente que não o reportaram às autoridades o que pode fazer subir o número total. O estudo da UA revela que “na base de dados disponibilizada pela GNR, foi contabilizado um total de 1306 acidentes, entre 2019 e 2020, em todo o país, envolvendo as três espécies de ungulados silvestres com maior expressão em Portugal: o javali esteve envolvido na maior parte dos acidentes (83,7 por cento), seguido do veado (9%) e do corço (7,3%). Em julho de 2019, perante a sucessão de acidentes com a interferência de javalis, o Governo emitiu um comunicado em que esclarece que o “Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto (artº114) refere de forma expressa que entidades titulares de zonas de caça, de instalações para a criação de caça em cativeiro e de campos de treino de caça e ainda aos titulares de áreas de direito à não caça, são responsáveis pelos prejuízos provocados pelas espécies cinegéticas nos terrenos vizinhos e nos próprios terrenos. No caso das referidas entidades não assumirem as suas responsabilidades, a lei prevê que os cidadãos possam recorrer aos tribunais, nomeadamente arbitrais, para serem indemnizados”. 

 

SANTO ANDRÉ E OS JAVALIS

Nas últimas semanas tem sido notícia na comunicação social. Um anormal número de javalis tem invadido o centro de Vila Nova de Santo André causando “danos severos” nos espaços verdes da povoação. David Gorgulho, em declarações aos jornalistas disse que este fenómeno “é sazonal”, e que o problema teve maior visibilidade “em outubro e “, tendo-se seguido “meses de acalmia”, mas agora “temo-los visto nas últimas semanas”, em muito maior número. “A população de javalis está descontrolada. Há realmente um descontrolo”, diz o presidente da junta de freguesia revelando que já deu conta da sua preocupação à Câmara Municipal de Santiago do Cacém, que contactou o ICNF no sentido, de em conjunto, conseguirem tomar medidas que acabem com o problema. Para já, a autarquia vai colocar alimentação em algumas zonas fora do perímetro urbano, para os tentar afastar do centro da localidade.

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