Diário do Alentejo

Os dias de quem viveu o incêndio de Odemira de perto

27 de agosto 2023 - 11:00
Depois do incêndio que assolou o concelho de Odemira, é tempo de limpar terrenos e escombros, avaliar prejuízos e aguardar pelos apoios
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Na tarde de 5 de agosto terá começado, no parque de merendas de São Miguel, o incêndio que ardeu durante cinco dias no concelho de Odemira e que chegou aos municípios algarvios de Aljezur e Monchique. Entre 5 e 9 de agosto foram consumidos pelas chamas cerca de 10 000 hectares de terreno, num perímetro de 50 quilómetros, naquele que, até ao momento, foi um dos maiores incêndios de 2023. As operações envolveram mais de 1000 bombeiros de diversas corporações do País, 367 veículos e 16 meios aéreos. O Governo, nos dias seguintes, desdobrou-se em visitas à região e em reuniões com cidadãos, empresas e entidades, ficando a garantia de que até 12 de setembro iria ser feito o levantamento dos prejuízos, analisados os possíveis apoios e encontrada uma resposta para todos aqueles que foram afetados pelo incêndio. O “Diário do Alentejo” percorreu a área ardida uma semana depois de o fogo ter sido considerado dominado.

 

Texto Marco Monteiro Cândido 

 

O dia está claro e luminoso. À medida que a Estrada Nacional 120 (EN120) serpenteia pelo interior do concelho de Odemira, rumo ao litoral, a temperatura vai descendo. A neblina marítima faz-se notar sobre alguns cerros e montes e, mais junto ao mar, sobre as falésias escarpadas onde a terra termina abruptamente.

 

O aroma a maresia que se poderia fazer sentir é substituído pelo odor a eucaliptos queimados. A terra queimada. A vidas suspensas.

 

Alguns quilómetros depois de São Teotónio, ainda antes de se chegar a São Miguel, fica Vale Juncal, bem junto à EN120. É aí que reside José Fragoso, eletricista reformado da antiga Rodoviária Nacional e que divide a sua vida entre Setúbal e o concelho de Odemira. Cada vez menos na cidade sadina e cada vez mais em Vale Juncal.

 

As janelas de sua casa têm vista privilegiada para o que ficou depois de o incêndio passar. As vistas de trás e da frente permitem ver as árvores queimadas e os tons de negro, castanho e cinzento, a herança que o fogo deixa sempre que parte.

 

Com 72 anos, o desfiar da memória dos dias recentes tem ligação direta com a emoção desses momentos. Saiu de sua casa dois dias depois do início do incêndio, na segunda-feira, 7 de agosto. Contra a sua vontade. Não via necessidade disso.

 

Queria ficar, tentar defender o que é seu, caso fosse necessário. Por ordem das autoridades, saiu com a sua mulher para São Teotónio, onde o comando operacional montou um dos centros de acolhimento para as mais de 1400 pessoas deslocadas de forma preventiva ao longo dos dias de incêndio.

 

Quando voltou, não sabia o que iria encontrar. E isso foi o pior, a incerteza que não confirmou os maiores receios. “Quando cheguei aqui foi um alívio. À partida estava descansado com a casa, mas nunca se sabe”.

 

Os prejuízos, esses, afetaram sobretudo os sobreiros, numa área de 12 hectares. Que não sabe bem como há de recuperar.

 

Na conversa com o “Diário do Alentejo” (“DA”), visivelmente emocionado por ter vivido algo inédito em 72 anos de vida, mostrava-se sem saber que passos dar, o que fazer em relação aos prejuízos, muito menos desconhecendo o facto de o Governo ter anunciado o prazo de 12 de setembro como a data em que haverá “dados definitivos dos prejuízos e, provavelmente, até já uma ideia dos apoios concretos”, como referiu a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, na sua visita ao terreno, a 13 de agosto passado. Até lá, e por agora, José Fragoso continua a olhar uma e outra vez para o terreno queimado em volta.

 

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ONDE TUDO COMEÇOU

À medida que a estrada segue para sul, a paisagem, de serra, parece que foi pintada com as cores de um outono pálido, em tons de sépia. Ao longo do caminho que se vai aproximando cada vez mais do Algarve, o cheiro a queimado vai sendo cada vez mais intenso, impregna-se em tudo o resto. Sobrepõe-se a tudo, ainda mais quando alguma rajada de vento se levanta.

 

Na descida que a EN120 faz antes de chegar ao cruzamento para São Miguel, passa-se, primeiro, pelo parque de merendas da aldeia. É aqui que, segundo os relatos, o incêndio terá começado na tarde de sábado, 5 de agosto, por negligência, facto que a Polícia Judiciária ainda está a investigar.

 

Mais abaixo, do lado oposto, antes do cruzamento para a aldeia, está o Parque de Campismo de São Miguel, que chegou a ser evacuado, mas que escapou às chamas, apesar de estas terem chegado a poucos metros do recinto do mesmo.

 

Na aldeia de São Miguel, que esteve praticamente rodeada pelo fogo, a perspetiva não é a de que terá sido, somente, mais um incêndio que terá começado fruto de negligência ou das temperaturas altas. No café Cantinho as teorias vão noutro sentido.

 

“Eu cheguei do trabalho nesse dia mais ou menos às 15:30 horas. Estavam lá pessoas, mas não havia lume, nem churrasco nenhum como dizem. E, depois, às 16:00 soube que o fogo já tinha começado”.

 

Quem o refere é M., um habitante de São Miguel que pede para não ser identificado. Assim que se apercebeu do que estava a acontecer, foi com os seus familiares preparar mangueiras para fazer face ao incêndio, caso se aproximasse das suas casas, o que achavam, apesar de tudo, pouco provável de acontecer, até porque “parecia que ia no sentido do mar”.

 

“De repente ouvimos: pum, pum! Olhámos para além [para o lado contrário ao foco inicial, na direção de Vale dos Alhos e da “serra”], dois fogos! A minha mãe até disse: ‘Assim vamos ficar rodeados’. Quando vi pensei que seria melhor desistir, porque era para acabar. Nessa noite e nos dias seguintes comentei e [as autoridades] disseram-me que eram projeções. Mas as projeções vão a favor do vento, não vão contra. É impossível. Até porque era uma distância muito grande. Sou daqui, fui criado aqui e já vi muito fogo. Eu não devia dizer isto, mas, para mim, a serra estava artilhada. Não é normal um fogo, que não era muito grande, [evoluir assim], num dia com pouco vento e pouco calor”.

 

Graça Viana, a proprietária do café onde as gentes de São Miguel se reúnem, refere que viveram “assustados” aqueles dias, pelo medo de que o incêndio “chegasse às casas”.

 

“Andava tudo desorientado porque era muito fumo, muito calor, muito fogo. Era a aldeia inteira. Os fogos que costumamos ter é um num lado, outro noutro. Aqui era fogo tudo à volta”.

 

As críticas também se fazem notar quanto à atuação do dispositivo, nomeadamente, em relação à evacuação das pessoas, como M. faz questão de frisar. “Como é que se tiram as pessoas doentes e de idade [de casa] e se põem no campo de futebol, com o calor, com o fumo, sem terem onde se sentarem, ao sol? Só ao fim da tarde é que trouxeram água”. 

 

“Durante o dia parecia que era noite. O fumo era tanto”.

 

Armerinda Carlota, de 65 anos, toda a vida em São Miguel, não chegou a ir para Odemira como muitas pessoas da aldeia, apesar de ter tido o incêndio mesmo em frente à sua casa, que não foi atingida porque os vizinhos “tinham água e eles é que apagaram o fogo”

 

. “De repente começou a arder tudo”. Começou a ver as pessoas a saírem das suas habitações para o “campo da bola” da aldeia por ordem da Guarda Nacional Republicana (GNR), que não queria “ninguém em casa”. Armerinda Carlota acabou por sair, juntando-se aos demais. “

 

Fui também, à espera. Até que houve uma hora em que disseram para a gente ir para casa. Estivemos lá muito tempo”.

 

Olinda Candeias, residente à saída da aldeia, no caminho que segue para Vale dos Alhos, uma das muitas localidades evacuadas, recorda, ainda assustada: “Nós estávamos tão mal, tão mal ali… Era um fumo horrível. Eu saí de casa, mas o meu marido não, ficou. Se tivesse saído ardia tudo”. Como ardeu, praticamente tudo, até Vale dos Alhos.

 

 

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A ALDEIA SEGURA ONDE QUASE TUDO ARDEU

De São Miguel a Vale dos Alhos distam três quilómetros. A estrada estende-se por um vale, no fundo de dois cerros quase em paralelo, onde uma ribeira correu outrora, muito antes do incêndio do princípio de agosto ter queimado todo o seu leito.

 

O alcatrão que leva a Vale dos Alhos, uma das cinco “Aldeias Seguras” do concelho de Odemira, termina pouco mais à frente, dando lugar a um caminho de terra batida, que se embrenha na serra. Um lugar isolado, por natureza, e pouco habitado, todo o ano.

 

O outrora vale cercado por montes coroados pelo verde dos eucaliptos, dos medronheiros e das estevas, é agora um cemitério de árvores, de silêncio. O chão cinzento e negro desfaz-se em cinza que, a cada passada que se afunda, sobe pelo ar, ficando suspensa até assentar, de novo, no chão negro e queimado. De caminho, é possível observar automóveis completamente carbonizados e anexos destruídos.

 

Em Vale dos Alhos, das cerca de 30 pessoas que aí residem, poucas, muito poucas, são portuguesas. Cristina Chichorro, oficial de segurança no âmbito do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” (ver caixa) é uma delas.

 

À entrada da aldeia tem um alojamento local e um pouco mais à frente, numa outra encosta, é onde reside. Apesar dos prejuízos, ambos os imóveis resistiram ao incêndio. Por sorte.

 

“O fogo começou no sábado e nessa noite já dava para ver daqui. No domingo começou mesmo atrás de nós, numa colina, e passou”.

 

Embora algumas pessoas tenham sido evacuadas de Vale dos Alhos logo no sábado, a oficial de segurança apenas o foi no final da manhã de domingo. Nessa noite, o incêndio começou a descer junto à antiga escola primária que albergava, desde março, uma reserva de burros pertencente à associação Arco do Tempo e cujos animais tiveram de ser retirados, segundo a agência “Lusa”, para o parque de campismo de São Miguel, num percurso de três quilómetros feito a pé.

 

“Continuei com acesso a Vale dos Alhos e no domingo à noite, como pouco dormi, consegui vir aqui ao local várias vezes. A última vez que vim aqui eram 04:30 horas e o fogo estava a começar a descer a colina. Mas como estavam muitos bombeiros fiquei descansada. Falei com os bombeiros várias vezes e eles, de facto, não conseguem aceder a muitos desses locais, dessas colinas. A maneira de lidar com estes fogos é deixar [arder] e quando chegam perto das localidades, aí sim, entram em ação. Para mim isto é muito estranho, o deixar arder. Durante a noite não há meios aéreos, então é deixar andar”.

 

Até que chegou segunda-feira, o dia mais crítico para a zona desta aldeia. A previsão, já se sabia, era de que os ventos iriam mudar de direção, colocando, previsivelmente, Vale dos Alhos na rota das chamas.

 

O marido de Cristina avisou-a: “Isto provavelmente vai correr mal”. Já em São Miguel, no campo de futebol, para onde tinham sido evacuados, tentou obter informações juntos dos operacionais da GNR e dos bombeiros. Em vão. Ninguém sabia ao certo como estaria Vale dos Alhos.

 

“Havia muitas frentes a acontecer em simultâneo. Foi muito complicado. Os meios aéreos não são suficientes, as ordens se calhar não são as mais certas e tivemos aqui uma tragédia”.

 

Cristina Chichorro refere que, junto à aldeia onde reside, chegaram três frentes de incêndio e que o fogo passou muito rapidamente, com violência, não dando praticamente tempo de reagir. “Foi muita sorte porque eu sei que não estavam aqui bombeiros nenhuns quando o fogo começou a chegar por trás da casa onde vivo”.

 

No final desse dia, o marido conseguiu chegar a Vale dos Alhos, de mota e por “caminhos alternativos”. Passou a noite a apagar fogos que tinham nos alpendres do alojamento local, apesar de o incêndio já ter passado. “Se ele não estivesse lá, de segunda para terça teríamos perdido pelo menos uma casa”.

 

A casa de Cristina tem bastantes danos, apesar de não ter ardido. “Ardeu o sistema de água, não temos cabos de eletricidade, quadros elétricos, perdemos as galinhas, o nosso anexo ardeu e algumas máquinas. Por dentro está tudo bem. O alojamento local tem menos danos, mesmo assim, os suficientes para não reabrir. A época de turismo terminou para nós, temos muita coisa para arranjar, há muita coisa para fazer, por isso a nossa época terminou. Não temos condições para receber aqui pessoas, para além da paisagem que agora não está nada convidativa”.

 

Neste momento está na fase de apurar os prejuízos, até porque “não foi fácil saber por onde começar. Quando uma casa arde toda é mais fácil. Mas quando as casas ainda estão de pé há muita coisa para perceber”.

 

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No momento em que falou com o “DA”, Anabela Costa estava a remover o que ficou queimado na sua casa, com ajuda de moradores locais. O entulho, preto, muito dele feito carvão, ia-se amontoando à frente da vivenda de dois andares, na correnteza de casas que ficam à beira da estrada de Vale dos Alhos, que passa na povoação e termina mais à frente. Só depois de o perito da seguradora que tem contratada vistoriar os danos é que pôde começar a remover tudo o que ficou danificado.

 

“Quer fotografias de tudo, mas eu não consigo provar nada e sem fotografias não consigo avançar com o processo”.

 

Para a proprietária da casa de férias que também funciona como alojamento local, a cronologia dos acontecimentos está algo difusa na sua memória, abalada, revoltada que está com o que aconteceu. Vislumbrou o fogo por trás do monte que fica por trás de sua casa, com uma várzea pelo meio. Ligou à proteção civil. Viu uma série de veículos dos bombeiros estacionados na povoação. Deitou-se pela 01:00 hora, descansada pela vigilância do dispositivo. Mas, no entanto, deixa críticas à sua atuação.

 

“Sem ordens da proteção civil, os bombeiros não atuam. Aliás, só protegem quando está a chegar perto de casa. Isto era tudo verde e ficou tudo destruído. Os bombeiros voluntários estão de parabéns, mas a proteção civil é responsável uma vez mais e vai continuar a ser. E os aviões só começam às 09:00 ou às 10:00 horas quando às 06:00 já é dia. Se começar a arder antes… A realidade é esta”.

 

Foi evacuada como a restante população. Não se recorda se no domingo ou na segunda-feira. A passagem do tempo está enevoada, turva, como se o fumo que inebriou os sentidos continuasse a fazer efeito alguns dias depois.

 

Mas nunca pensou que o incêndio chegasse ao ponto a que chegou, junto de sua casa. Solicitou ajuda, as equipas estavam no terreno, o incêndio ainda a alguma distância, com uma várzea pelo meio. “As minhas varandas, da parte de trás, arderam. Não entrou em casa [o fogo] porque quando fui evacuada ainda fechei as portadas e desliguei tudo o que era elétrico. Quando voltei, passados uns dias, deparei-me com isto”.

 

Quanto ao futuro, Anabela Costa deixa várias questões, com muita revolta à mistura: “Em relação à floresta, como será? A floresta autóctone está a desaparecer, deu origem a eucaliptos e o Governo continua a pagar, a incentivar os eucaliptais. Portugal vai ficar assim, todo queimado! Qual é a proteção civil que Portugal tem? Nenhuma. O que eu gostava de saber, no meio disto tudo, é o que os leva a escolher qual é a casa que vão salvar. Porque deixam arder tudo até chegar às casas. Não sei qual o critério e nunca vou descobrir”.

 

 

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VALE DOS ALHOS É UMA DAS NOVE “ALDEIAS SEGURAS” DO DISTRITO DE BEJA

No distrito de Beja existem nove aldeias seguras, nos concelhos de Odemira (cinco), Ourique (três) e Mértola. A escolha das aldeias a integrar o programa tem tido por base a Carta de Perigosidade de Incêndios Rurais e pressupõe a existência de refúgios coletivos, planos de evacuação, execução de simulacros e oficiais de segurança, que têm por missão fazer a ligação com as autoridades em caso de incêndio.

 

O que não aconteceu, segundo Cristina Chichorro, em Vale dos Alhos. “Eu, como oficial de segurança, de pouco servi. Pouco ou nada. Não fui contactada pela proteção civil. Lembro-me perfeitamente de perguntar [na altura em que foi designada como oficial de segurança]: ‘numa situação de fogo quando é que eu tenho de, realmente, acionar o alarme e tirar as pessoas das casas?’. Disseram-me que eu seria contactada. Mas ninguém me contactou com essa indicação. Não houve qualquer movimentação nesse sentido, o que me faz pensar que esse é um exercício que num fogo desta dimensão não faz sentido. Num fogo menor poderia funcionar. Mas eu achei muito estranho. No sábado, o fogo ainda não estava aqui perto mas vinha na nossa direção. Passou-se sábado, domingo, segunda-feira… até hoje! Mas a GNR fez o seu papel de evacuar as pessoas, acho muito bem”.

 

Anabela Costa também corrobora essa situação. “No ano passado fizeram um simulacro, mas, como vimos, de seguro não tem nada. Agora não funcionou. A pessoa que ficou encarregada, não a contactaram. Nada, zero. Eu estive aqui e não houve nada”.

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