Diário do Alentejo

Sabores

09 de julho 2023 - 11:00
Projeto pretende preservar a gastronomia tradicional através das novas gerações
Foto | Ricardos ZambujoFoto | Ricardos Zambujo

“A Cozinha da Avó” nasceu em 2021 na pequena aldeia de Santana de Cambas, no concelho de Mértola, com o intuito de “reinterpretarmos as receitas alentejanas tradicionais das nossas avós”. A iniciativa abriu portas para a criação de três hortas colaborativas, de um restaurante pop-up, de um laboratório de experimentação e da disciplina de 1.º ciclo “Academia de Cozinha”. O “Diário do Alentejo” foi até à aldeia mertolense acompanhar uma das últimas aulas deste ano letivo.

 

Texto  Ana Filipa Sousa de Sousa  

 

Habituados a estas andanças, os sorrisos rasgados que trazem ao entrarem na sala não enganam e confirmam o entusiasmo para mais uma aula. Ainda antes de colocarem os aventais e jogarem mãos à obra dirigem-se, numa fila agitada, ao lavatório, enquanto entre gargalhadas vão perguntando – “O que é que vamos fazer hoje?”, “Dá para o lanche?”, “É doce ou salgado?”. O frenesim com que todas as semanas recebem Ana Rita Barbosa tem deixado claro o sucesso do projeto que esta coordena e que tem deliciado miúdos e graúdos.

 

“A ‘Cozinha da Avó’ é um projeto de inovação social focado nas questões da alimentação saudável, sazonal e sustentável, assente na abordagem da horta para o prato e que se inspira na cozinha das nossas avós para resgatar receitas e as introduzir no quotidiano da nossa alimentação, em particular, nas ementas das cantinas coletivas de escolas e lares. Na horta produzimos de forma regenerativa, melhorando o solo e a capacidade de retenção de água, e na cozinha usamos os produtos da horta para fazer receitas inspiradas na cozinha tradicional. Neste processo falamos na necessidade de alteramos a maneira como produzimos e consumimos alimentos para podermos cuidar da nossa saúde e da saúde do planeta”, explica ao “Diário do Alentejo” (“DA”) a coordenadora.

 

Entre as diversas iniciativas que o projeto abrange, a “Academia de Cozinha”, uma Atividade de Enriquecimento Curricular (AEC) destinada às crianças do 1.º ciclo do concelho de Mértola, tem sido aquela que em que Ana Rita Barbosa tem notado um feedback diferente, mas extremamente positivo.

 

“Meninos, cheiram a quê estas folhas? Hoje vamos fazer uma receita típica de Mértola e que, normalmente, se faz por esta altura do São João e de São Pedro. Alguém sabe o que são nógados?”, questiona Ana Rita Barbosa enquanto distribui algumas folhas de laranjeira pelos alunos. As respostas, que a coordenadora já não estranha, não são unânimes. Alguns acenam com a cabeça que sim, outros dizem que não se lembram de os ter feito em casa e poucos garantem que nunca provaram. 

 

“Eu, por acaso, nunca fiz em casa, nem provei, mas sei o que são”, diz Santiago Palma, que frequenta o 3.º ano em Santana de Cambas.

 

“Quando chegámos às escolas percebemos que havia muitos miúdos que desconheciam as nossas receitas tradicionais, mas não só as do concelho de Mértola, essencialmente, as do Alentejo no geral. Por exemplo, havia crianças que nunca tinham comido açorda, porque, simplesmente, os pais não fazem este tipo de comidas em casa”, relembra. E acrescenta: “Uma das coisas mais importantes [que nós queremos fazer com este projeto] é colocar a alimentação no centro da mudança para um modo de vida mais saudável e mais sustentável e fazer com que cada pessoa tenha um contributo a dar e perceba que para mudar basta resgatar velhos hábitos e costumes alimentares”.

 

Assim, a urgência em sensibilizar para as práticas sustentáveis de produção e de consumo de bens alimentares e, consequentemente, promover o diálogo intergeracional através da recuperação e proteção do património cultural da região tem sido o mote que tem feito a “Cozinha da Avó” funcionar.

 

“Temos esta necessidade de mudar hábitos alimentares e de diminuir a quantidade de alimentos processados que são mais prejudiciais para a saúde e mais exigentes no consumo de recursos. E assim optámos por nos inspirar na cozinha mais tradicional e genuína dos nossos avós que recorria, em grande parte, àquilo que a horta e o campo davam, quase sem recurso a alimentos processados”, realça.

 

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A ENVOLVÊNCIA DE UMA ALDEIA

Enquanto Ana Rita Barbosa prepara o óleo para, mais tarde, fritar os nógados, os 11 alunos apressam-se a cortar e a “fazer bolinhas” com a massa. “Esta é uma receita muito simples. E como vamos passar os nossos nógados no mel antes de os comermos, não precisamos de meter açúcar”, continua a coordenadora.

 

Esta é uma das várias receitas que, durante os últimos dois anos letivos, Ana Rita Barbosa tem ensinado e trabalhado com as crianças, além de “limonada, sumo de laranja, migas, açorda, gaspacho, fatias de ovos, chás e bolos”, como enumeram ao “DA” os alunos da Escola Básica de Santana de Cambas.

 

“Nós, aqui na AEC, temos aprendido a fazer receitas do Alentejo e, para mim, a mais difícil foi a das migas, porque tem muitos ingredientes”, diz Duarte Santos, de oito anos. A sua colega Constança Madeira, que frequenta o 2.º ano, acrescenta: “As migas demoram muito tempo a fazer e temos de dar-lhe muitas voltas”.

 

Embalados nos pensamentos, as respostas não fogem umas das outras. A receita de migas é, sem dúvida, aquela que consideram “a mais difícil”, enquanto os chás e as limonadas são as “mais fáceis”, até porque “é só espremer os limões, meter o açúcar e está feita”, como garante Duarte Pernas, de sete anos.

 

Ainda que “colocar as mãos na massa” seja das atividades preferidas da maioria dos alunos, há também quem prefira ir à horta.

 

“O que mais gosto de fazer aqui na AEC é ir à horta apanhar os legumes”, refere Santiago Palma, enquanto Duarte Pernas rebate: “Eu não. Gosto mais de cozinhar aqui, porque nós também temos outra AEC sobre hortas e como tenho uma horta em casa já sei as coisas”.

 

A facilidade com que identificam os ingredientes necessários para completar uma receita e, naturalmente, através do contacto com as hortas, a época em que cada uma delas deve ser feita, tem sido um dos trabalhos alcançados pela “Cozinha da Avó”.

 

“Encontrei-me há pouco tempo com a mãe de um miúdo da AEC que me dizia que eu tinha de lhe dar a minha receita das fatias de ovos, porque o filho antes não gostava e agora está sempre a pedir para o pequeno-almoço”, conta Ana Rita Barbosa entre risos. Lara Horta, de sete anos, brinca: “A professora Ana Rita explica bem e depois eu tento ensinar também em casa, mas, às vezes, engano-me”.

 

No geral, além da “escola-mãe” onde o projeto nasceu, a “Cozinha da Avó”, neste último ano, alargou-se às escolas básicas de Mértola e de Mina de São Domingos e, segundo Ana Rita Barbosa, cimentou-se “ainda mais” na comunidade local.

 

“O projeto, além de conseguir os seus objetivos de recuperar hortas abandonadas, produzir alimentos saudáveis, fazer chegar esses alimentos às cantinas das nossas escolas e capacitar as nossas crianças na área da cozinha, conseguiu ainda agregar a comunidade de Santana de Cambas, reforçar o sentido de pertença a esta aldeia e tornou-se um verdadeiro projeto de comunidade. Hoje este projeto é de Santana e são as pessoas de Santana, não só os técnicos ou recursos do projeto, que o mantém ativo”, afirma a também técnica de turismo.

 

Além desta vertente, a “Cozinha da Avó” criou ainda um restaurante pop-up – em que “uma avó ou um avô prepara voluntariamente uma refeição local, sazonal e mediterrânica, que será degustada pela comunidade” – e um laboratório experimental que tem permitido fazer “a adaptação de receitas tradicionais às necessidades nutricionais das crianças e ementas escolares”, bem como “a experimentação de novos pratos a partir de produtos da horta”.

 

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A VERTENTE SOCIAL DO PROJETO

Agregado a este conceito da sustentabilidade, através das hortas e da gastronomia, o projeto que Ana Rita Barbosa coordena abrange ainda uma vertente social ímpar. Ana Rita Elias, de 73 anos, e Teresa Cavaco, de 66, são ambas reformadas e desde o início da “Cozinha da Avó” viram-na como um “alívio” e uma forma de estarem “ocupadas” e de se sentirem “úteis”.

 

“O que nós mais temos feito é trabalhar. É uma coisa e depois é outra, para ser sincera, eu vim para cá há 13 anos e tenho trabalhado mais do que os 43 em que estive em França. Uma pessoa não para, corre de um lado para o outro, outro e outro, mas também não me via na reforma sentada no sofá o dia inteiro a ver televisão”, sublinha Ana Rita Elias.

 

Voluntárias e membros da direção da Casa do Povo de Santana de Cambas, entidade responsável pelo projeto, são o braço direito de Ana Rita Barbosa nas hortas colaborativas, nas saídas com os restaurante pop-up e nas experiências no laboratório, como a receita das pataniscas de curgete.

 

“O projeto deu uma vida à aldeia, porque está muita gente envolvida. Há uma ligação entre os mais velhos e os mais novos que faz com que a tradição não se perca no tempo, porque se não fizermos isto qualquer dia ninguém sabe fazer nada tradicional”, reforça Teresa Cavaco.

 

Ideia que a própria coordenadora corrobora: “Esta iniciativa é fundamental para garantir a continuidade do saber-fazer antigo que, de outra forma, pode perder-se. [Assim, permite-se] passar esse saber para as gerações mais novas, mas também possibilitar a inovação na cozinha tradicional, por forma a melhorar as suas qualidades nutricionais à luz do conhecimento que temos hoje”.

 

Ainda que o presente esteja a ser um sucesso, o futuro permanece incerto. O projeto, que foi apoiado com fundos europeus através do Programa Operacional Inovação Social e Emprego (Poise) no âmbito das Parcerias para o Impacto, teve como data de término dezembro de 2021, contudo, tem sido a comunidade que o tem mantido em movimento.

 

“A sua continuidade, a meu ver, está assegurada, porque a comunidade já se apropriou do projeto. Esperamos, claro, que haja algum suporte financeiro para manter com tranquilidade as pessoas que trabalham nele, mas temos a certeza de que a ‘Cozinha da Avó’ é para continuar”, revela a coordenadora.

 

“Se ele se acaba é uma pena. Tanto trabalho lá naquela horta e depois vê-la desprezada ou ao abandono, e tudo o que temos feito até agora desaparecer, é triste”, comenta a voluntária de 73 anos.

 

 

Assim, ao final da tarde na pequena sala da escola de Santana de Cambas, decorada com manjericos, os risos escondidos que se ouvem em volta de uma das mesas espelham a travessura que prepararam. O tacho, que outrora serviu para envolver os nógados em mel, está quase limpo. Os pequenos dedos pegajosos são a prova do crime. Esta foi a penúltima receita da AEC de culinária. Daqui a três meses a “Cozinha da Avó” está de regresso às salas de aulas.

 

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