Diário do Alentejo

Falar com o coração

30 de dezembro 2022 - 09:00
O direito de promover e cultivar o barranquenho foi aprovado a 30 de dezembro de 2021
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Desde o início do milénio muita coisa mudou para a pacata vila de Barrancos. Em 2002, os touros de morte foram legalizados e, em 2021, o dialeto barranquenho foi reconhecido e protegido pela Assembleia da República. O “Diário do Alentejo”, volvido um ano, foi perceber o sentimento que Barrancos carrega na voz e no coração.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Entre vales, curvas e contracurvas a dimensão de quem a vê, no cimo do montado, não condiz com a quantidade de vozes que lá tem dentro. O sobe e desce na rua, habitual nesta época festiva, já não é o que era comparado com antigamente. Diz-se, por quem lá vive, que cada vez são menos. Menos jovens, menos velhos e menos casas habitadas. 

 

No largo principal, às portas da célebre Sociedade Recreativa, o rebuliço surge por volta da hora do almoço. Entre uma taça de vinho, um café ou um petisco “para abrir o apetite” os olhos mantêm-se atentos à grande fogueira que começa a ganhar forma. “Mariano, este ano isso dura até aos Reis”, grita um. “É este ano que a caixa do multibanco não aguenta”, graceja outro.

 

Nas últimas semanas, Luís Mariano e Marco Cardoso, trabalhadores do município, têm-se dedicado em prol da tradição, que manda, no dia 24, que se acenda a conhecida fogueira e se asse o aguardado “catalão”. Enquanto se ajeitam os últimos madeiros que chegaram, Marco confessa ao “Diário do Alentejo” (“DA”) que, à exceção da Fêra de Barrancos, esta é a única altura do ano em que a vila raiana tem mais movimento.

 

“Aqui os velhotes já se vão embora e a malta mais nova só quer saber disto lá para agosto por causa das festas e, agora, no Natal. Barrancos não tem muitas casas fechadas, as casas têm pessoas, mas só vêm cá de vez em quando. Olhe, digo-lhe mais, aqui nem a chuva vem”, critica, relembrando as grandes inundações que as fortes chuvas provocaram um pouco por todo o País.

 

Umas ruas abaixo, perto do Museu Municipal, na pequena e resguardada Mercearia Nazaré, também os irmãos Carlos e Paulo notam que cada vez mais a vila está despovoada. Os mais velhos vão desaparecendo com os anos e a falta de trabalho nas redondezas tem feito com que os jovens saiam em busca de melhores condições de vida e que não regressem tão cedo. Com eles levam o sotaque característico daquela zona, mas rapidamente o perdem. E na vila, ainda que o espanhol se misture com o português em cada esquina, também este começa a dar sinais de que, um dia, possa vir a acabar.

 

“Já não se fala como se falava antigamente. Há uns anos, ali na Sociedade juntava-se muita gente, mas agora foram morrendo e abalando e vai-se acabando tudo. Encontrar alguém que fale barranquenho já não é fácil, a pronúncia não se acaba, mas já não é o que era”, lamenta Paulo, sob o olhar atento da sua mãe.

 

Alheios à forte pronúncia, disfarçada quando se fala com aqueles que não a têm, até a própria mãe, com 87 anos, Dona Pureza, como é carinhosamente tratada na vila, não a reconhece. Diz, convicta, que apenas dá “um toquezinho no barranquenho, mas nada de especial” quando comparado com outros tempos. “Antes havia aí um senhor que falava o barranquenho original que nem nós, próprios daqui, o percebíamos”, brinca Carlos.

 

A proximidade de 500 metros com a fronteira espanhola e a grande distância de 105 quilómetros com a capital de distrito foram, e continuam a ser, os principais fatores para a sobrevivência do barranquenho. Passado de geração em geração, acentuado quando a comunicação para fora do concelho era escassa, a ligação entre a localidade raiana e o país vizinho sobressai em cada frase.

 

“Se nós virmos bem, todas as terras da fronteira com Espanha, desde Vila Real de Santo António até Braga, tiveram espanhóis, mas nenhum sítio, sem ser Barrancos, ficou com esta presença tão vincada”, realça.

 

Multimédia0Foto | Carlos Nazaré Acredita que já não se fala o barranquenho de antigamente

 

O BARRANQUENHO NÃO É ESPANHOL

Por entre as ruelas, desde o alto do cemitério até à Estatua do Touro, é fácil perdermo-nos entre uma ou outra expressão alentejana com pronúncia espanhola. Em tempos, mesmo na escola primária, o mais comum era ouvir-se o barranquenho dentro e fora das salas de aula, porque os próprios professores eram nascidos e criados em Barrancos.

 

“Nós íamos para a escola e a maior parte dos professores eram quase todos daqui e por isso falavam barranquenho, [contudo] a questão do escrever nunca foi muito comum, porque não é fácil. Na escola tínhamos a particularidade de escrever muitas vezes sem o ‘s’ porque é como falamos, mas, na verdade, nós não escrevemos barranquenho, porque o barranquenho não se escreve”, explica ao “DA” o antigo contínuo da Sociedade Recreativa, Adelino Caçador.

 

Com pouco sotaque à mistura, justificado por ter estado fora alguns anos, diz que dificilmente, hoje, “há alguém que escreva barranquenho” e teme que o próprio falar esteja em risco face à globalização dos mais novos através das tecnologias.

 

“Antigamente, nós não saíamos daqui e por isso falávamos o que aprendíamos, ou seja, o barranquenho. Antes, era muito comum, em qualquer casa em Barrancos, falar-se o espanhol e o barranquenho. Por exemplo, na casa dos meus pais, falava-se espanhol, mas se entrassem outras pessoas, que em princípio não falavam o espanhol, falávamos o barranquenho”, relembra.

 

Esta é outra das particularidades. Quem vai a Espanha oriundo de Barrancos não é percebido se falar o seu dialeto, porém quem vem de terras espanholas e entra na vila raiana é entendido na perfeição.

 

“Dizem-nos muitas vezes que nós falamos assim porque temos a Espanha aqui perto, mas isso não tem nada a ver, porque ali fala-se espanhol e nós falamos barranquenho. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, não é nada igual. A verdade é que nós vamos a Espanha e temos mais facilidade em falar espanhol, mas nós, aqui, não falamos espanhol. Eles ali [se nós não falarmos espanhol com eles] não percebem nada, mas nós percebemo-los a eles e aí é que está a diferença, podem falar o que quiserem que nós percebemo-los”, elucida Marco Cardoso. Carlos Nazaré concorda: “nós, quando vamos a Espanha, falamos espanhol, porque eles não nos entendem, nem conhecem, nós temos essa facilidade de conseguirmos falar as duas línguas bem, o espanhol e o português”, diz.

 

A DIFICULDADE EM PRESERVAR UMA IDENTIDADE

Volvido um ano após o reconhecimento, pela Assembleia da República, da importância de proteger e salvaguardar o barranquenho enquanto “veículo de transmissão do património cultural imaterial, instrumento de comunicação e elemento de reforço da população de Barrancos”, a pacata vila permanece igual. Igual, mas com um orgulho acrescido.

 

Em 2008, também o município tinha dado o “primeiro e grande passo” e elevado o dialeto a Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal face ao “envelhecimento acentuado da população” e à possível perda de falantes. E desde então que se debate com um grande obstáculo: preservar uma tradição oral, que não tem deixado registos, não tem sido uma tarefa fácil, porque, ainda que “a maioria das pessoas fale barranquenho, com aquela pronúncia que havia antigamente já não há”.

 

 A mudança natural que a sonoridade do barranquenho tem seguido ao longo dos anos, influenciada por todos os estímulos que anteriormente não existiam, não agrada a todos. Há quem, por entre as travessas da vila, não considere o atual dialeto como barranquenho, uma vez que não era este que ouvia dos seus pais, avós e bisavós.

 

Para Cláudia Costa, vice-presidente da câmara barranquenha, passados estes primeiros meses, o município tem-se debatido com a dificuldade em documentar e uniformizar uma “ortografia convencionada aceite por todos”.

 

“Atualmente, temos em curso o Programa de Preservação e Valorização do Património Cultural Barranquenho, uma parceria que já vinha do outro executivo, com a Universidade de Évora, e que conta com a colaboração dos investigadores Maria Filomena Gonçalves, Maria Vitória Navas e Vítor Correia. [O nosso objetivo], passa por documentar a nossa Língua para a parte escrita e, posteriormente, introduzir, numa primeira fase, a aprendizagem do barranquenho em atividades de enriquecimento cultural”, começa por explicar. A proposta de gramática, baseada numa pesquisa exaustiva, auscultação, recolha e documentação linguística, está agora em “fase de apresentação” e deverá ser testada e discutida junto da comunidade.

 

“Como eu disse há pouco, [a ortografia] é algo que tem de ser aceite por todos, porque, se for chocar, as pessoas acabam por não a utilizar e depois perdemos mais do que ganhamos”, confessa.

 

Ainda assim, há quem esteja reticente quanto a esta “recolha”. Os irmãos Nazaré garantem que tal acontecimento, ainda que de louvar, “é muito complicado” e não veem nesta valorização um fator que venha revigorar a vila de Barrancos.

 

Multimédia1Foto | Claúdia Costa. A vice-presidente do município vive há 24 anos em Barrancos, mas não fala o dialeto

 

OS TEMPOS MUDAM E O BARRANQUENHO TAMBÉM

Falar barranquenho, na sua origem, já não é o que era e isso é ponto assente entre todos. Há quem acredite que este “faz parte do pessoal mais velho”. Porém, Marco Cardoso garante que, apesar dos “exageros”, os mais novos também o usam muito entre si, mesmo que de forma involuntária.

 

 “Os mais pequeninos se ouvem [o barranquenho] em casa, mesmo indo para a escola não o perdem e depois quando são mais velhos falam de forma natural e quem está de fora não percebe, mas agora também acho que já começaram a abusar e já exageram um bocadinho”, diz.

 

O seu colega Mariano corrobora. “Como é bonito é ouvirem falar a gente e nós não sabermos que nos estão a ouvir, porque senão começa-se a falar outra coisa qualquer que já não é barranquenho. O barranquenho é o normal que nós falamos, se nos pedirem para falar barranquenho nós não sabemos, porque tentamos forçar e aquilo já não é barranquenho, tem de ser de forma natural”, comenta.

 

Ao contrário do que Marco lamentava de manhã, com o início da tarde a chuva chega tímida, mas depressa ganha força. As poucas vozes que ecoavam por entre as ruelas começam a desaparecer e abrigam-se de uma tarde que se promete agitada.

 

O largo, que em tempos não deixava ninguém sossegar após o almoço, fica em silêncio. Silêncio, este, que destabiliza. O mesmo silêncio que a vila teme um dia começar a ouvir após o desaparecimento do barranquenho. O dialeto característico de Barrancos não é só um marco que distingue a vila alentejana, é também a história de uma gente que, vivendo isolada entre vales, curvas e contracurvas, não se ressentiu pela diferença e pela mistura entre os dois países irmãos.

 

CENTRO INTERPRETATIVO DO BARRANQUENHO EM “FASE DE OBRAS”

A Câmara Municipal de Barrancos confirmou ao “DA” que o edifício que albergará o futuro Centro Interpretativo do Barranquenho encontra-se em “fase de obras de requalificação” e estará localizado junto ao Museu Municipal de Arqueologia e Etnografia de Barrancos.

 

Segundo a vice-presidente, Cláudia Costa, este será “um espaço que reunirá o espólio linguístico e cultural de Barrancos” e que permitirá “promover o barranquenho nas vertentes de investigação e turística”.

 

"PORTUÑOL" INCLUÍDA NO DICIONÁRIO ESPANHOL

No início do mês a Real Companhia Espanhola (ERA), responsável pelo Dicionário da Língua Espanhola, divulgou a lista com “mais de três mil novos itens” onde incluiu o termo “portuñol”.

 

Segundo o diretor da ERA e presidente da Associação de Academias de Língua Espanhola este é “a forma de falar de base portuguesa que incorpora elementos lexicais, gramaticais e fonéticos do espanhol”.

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