Diário do Alentejo

Nos dias que correm, ter diabetes já não é o que era

20 de novembro 2022 - 11:00
Ulsba tem “prevalência superior à média nacional” de doentes diabéticos inscritos
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

A Ulsba tem-se debatido, nos últimos tempos, com falta de profissionais suficientes para dar resposta ao crescente aumento do número de doentes diabéticos. No Dia Mundial da Diabetes, 14 de novembro, o “Diário do Alentejo” foi conhecer a história daqueles que vivem entre contas, balanças e doses de insulina diariamente.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

O dia amanheceu cinzento e chuvoso. Na sala de aula da Maria Leonor, diagnosticada com diabetes há quatro meses, a euforia e os sorrisos dos colegas contrastam com o tempo que faz lá fora. Também eles tiveram de aprender, com o começo do ano letivo, a doença e a sua complexidade e por isso quiseram assinalar o Dia Mundial da Diabetes com a colega.

 

“Hoje a Maria Leonor não foi à escola, está com uma virose, mas quando acordou tinha um vídeo, enviado pela professora, feito pelos amigos da turma a relembrar a importância do Dia e a coragem dela. E isso deixou-nos logo muito felizes”, começa por contar ao “Diário do Alentejo” (“DA”), com um grande sorriso, a mãe Ana Lúcia Gonçalves.

 

O seu percurso no mundo da diabetes ainda é recente. Maria Leonor foi diagnosticada, com diabetes tipo 1, a 23 de julho e desde o primeiro instante que começou a administrar insulina.

 

“Nós estávamos de férias em Portimão e comecei a notar-lhe um cansaço fácil e uma perda de peso considerável, mas associei ao fim do ano letivo que até se tinha prolongado, [mais  do que o normal], por causa da pandemia da covid-19. Entretanto ela começou a ter muita polidipsia, ou seja, muita vontade de beber água e, [consequentemente, idas à casa de banho] e um dia quando chego ao quarto, de manhã, sinto um hálito cetónico e isso, enquanto enfermeira, direcionou-me para [um possível] diagnóstico”, explica a mãe.

 

O valor de 545 miligrama por decilitro, que o exame da glicemia da parafarmácia registou, foi a confirmação da suspeita que Ana Lúcia Gonçalves temia. “Foi um choque, mas naquele momento também percebi que o melhor dos diagnósticos que a minha filha podia ter era uma diabetes, porque naquela altura pensei [que poderiam ser outras doenças] muito piores”, confessa.

 

O caminho de 150 quilómetros até Beja foi a solução mais fiável que Ana Lúcia encontrou em conjunto com o pediatra, uma vez que, em plena época balnear, chegar ao Hospital de Faro seria “ainda mais demorado”. Dada a sua profissão, sabia de antemão os riscos que a filha corria se não fosse intervencionada rapidamente e, por isso, a viagem pareceu-lhe “interminável”.

 

Com a confirmação do diagnóstico, no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, a profissão começou a traí-la. Se antes os seus conhecimentos lhe tinham sido úteis para prevenir uma hiperglicemia ainda mais grave, agora os flashes das possíveis complicações da doença tornaram o momento “muito complicado”, porque tinha “uma vontade enorme de as conseguir controlar”.

 

Contrariamente, João, de 14 anos, já trata a diabetes por “tu”. Foi diagnosticado com o mesmo tipo de patologia aos três anos e não tem memória de viver sem a rotina das contas, da balança e das canetas de insulina. Os sintomas foram semelhantes aos de Maria Leonor, mas a perda de peso foi o que fez o “clique” nos pais.

 

 “A perda de peso, que foi à volta de dois quilos, é que nos deu o clique de que alguma coisa não estava bem, porque o João comia e bebia muito e, ainda que estivesse em fase de crescimento, não era normal também estar a perder peso. Fomos à pediatra e daí encaminhados [de imediato] para o Hospital de Beja, onde, mesmo antes de saírem os resultados, o médico que nos atendeu preparou-nos para uma diabetes tipo 1. E nós aí somos engolidos pelo chão por tudo e mais alguma coisa”, relembra a mãe, Ana Sofia Parreira.

 

Após o despiste, no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, de outro tipo de doenças, como a celíaca, diagnosticada desde os oito meses à mãe, Ana Sofia, João regressou à sua área de residência onde começou a ser seguido pela equipa de diabetes da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) e se tornou a “mascote” do serviço.

 

 “O João foi diagnosticado muito cedo, a primeira pessoa que lhe deu insulina ainda o acompanha, e por isso é a mascote da consulta [na Ulsba]. Ele sempre conviveu com a diabetes e não se lembra do diagnóstico, o que ele tem mais presente é a fase da [colocação] da bomba”, revela.

 

O jovem, que frequenta agora o 9.º ano escolar, foi um dos escolhidos, em 2017, para, “com outros miúdos da zona de Beja”, colocar um Sistema de Perfusão Subcutânea Continua de Insulina, ou seja, uma “bomba de insulina” em Évora.

 

A mesma sorte ainda não teve Lucília Lourenço. Diabética, tipo 1, há 23 anos a idade, de momento, não a torna “preferencial” para a colocação de uma “bomba de insulina”.

 

“A minha diabetes tem sido sempre muito descontrolada, devido à tiroide, o que é muito cansativo. E já me foi dito que deveria ter [uma “bomba de insulina”], porque seria bom para o meu controlo das hiperglicemias e hipoglicémias, mas, na altura, disseram-me que já não era nova, que não estava grávida nem a planear engravidar e portanto não era preferencial”, assegura a professora de 53 anos.

 

Ao contrário de Maria Leonor e João, o caso de Lucília não a apanhou de surpresa. Os vários diagnósticos de familiares sempre a deixaram alerta e “a fazer análises com alguma regularidade” e com 30 anos registou uns “valores da hemoglobina glicada que mostraram que já era diabética”, iniciando, assim, “a terapia com insulina”.

 

A tranquilidade com que encarou o diagnóstico, face à aceitação prévia, facilitou a sua relação com a doença, ainda que os dias, por vezes, sejam esgotantes e revoltantes.

 

“Quando uma pessoa não tem o valor normal porque faz disparates, sabe e aceita as consequências disso. Agora, quando se cumpre com tudo e esse controlo não acontece, é revoltante e começa-se a pensar em fazer porcaria, [porque], é muito cansativo uma pessoa fazer as restrições todas e não ver resultados”, desabafa Lucília, relembrando de seguida que, antes do sistema de leitura libre, chegou a picar-se 15 a 20 vezes por dia.

 

Segundo a mãe de Maria Leonor, Ana Lúcia Gonçalves, um diagnostico de diabetes, inevitavelmente, “condiciona muito a vida de uma família”, uma vez que, “basta dizer que o sentar à mesa e comer nunca mais foi assim, porque há uma contagem de hidratos de carbono, a balança passa a ser uma das nossas melhores amigas, e passa-se a administrar uma dose de insulina prévia a cada refeição”, descreve a enfermeira de 39 anos.

 

“UM SONHO TORNADO REALIDADE”

Em janeiro, o dia-a-dia de Maria Leonor levará uma mudança. Está previsto que coloque uma “bomba de insulina” e que reduza as 11 picadas, entre medição e insulina, diárias.

 

O Hospital de Beja tornou-se, em 2020, Centro Colocador de Bombas de Insulina, “sonho tornado realidade” para a Unidade Coordenadora Funcional de Diabetes (UCFD), segundo o seu coordenador.

 

 “[O facto da Ulsba se tornar Centro Colocador] na nossa opinião, teve uma importância extrema, [porque] vivemos, como já sabemos, no maior distrito de Portugal, cheio de assimetrias e temos apenas um Hospital do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que cobre toda a área geográfica e a sua população. A especificidade do tratamento com os nossos Sistemas de Perfusão [Subcutânea] Contínua de Insulina, vulgo “bombas”, foi um sonho tornado realidade, pela persistência e resiliência da equipa multidisciplinar da diabetes do Hospital de Beja, que não se conformou com que, inicialmente, as nossas crianças com diabetes tivessem que se deslocar (ainda mais) para os grandes centros colocadores de “bombas””, começa por explicar Carlos Marques. E continua: “foi com base nesse inconformismo que realizámos formação, estágios fora, iniciámos o seguimento conjunto de algumas crianças com “bomba de insulina”, para finalmente, em 2020, nos tornarmos Centro Colocador desta terapêutica”.

 

João foi uma das crianças que permitiu esta “conquista”. “O que nos explicaram, na altura, era que precisavam de 10 miúdos do distrito de Beja para irem a Évora colocar [as bombas de insulina] para depois certificarem Beja como Centro Colocador de Bombas e o João foi um dos jovens contemplados”, refere Ana Sofia Parreira.

 

Ao início, a aceitação à “bomba” não foi fácil. Com apenas nove anos, João não estava recetivo a ter constantemente um “objeto” junto a si.

 

“Ele logo no início não queria, mas tivemos a oportunidade de, antes da formação, ter uma “bomba” emprestada, por uns dias, para nos familiarizarmos e acabou por adaptar-se muito bem”, diz Ana Sofia Parreira, contando que ela e o marido já lembraram o filho que “aquilo é uma tecnologia e que pode avariar e a qualquer momento termos que voltar às canetas”.

 

ULSBA Com cerca DE 124 MIL UTENTES INSCRITOS e UMA PREVALÊNCIA SUPERIOR À MÉDIA NACIONAL

A tendência da doença, a nível nacional, é o seu aumento, sobretudo na diabetes tipo 2 que está associada “ao estilo de vida sedentário, à alimentação rica em hidratos de carbono (açucares) processados e gorduras e até ao aumento da esperança média de vida”.

 

Segundo o coordenador da UCFD, Carlos Marques, os dados “demonstram que dos cerca de 124 mil utentes inscritos na Ulsba, aproximadamente 10,5 por cento padecem de diabetes (tipo 1 e 2), o que é uma prevalência superior à média nacional” e que a previsão é que continue a subir.

 

Também o presidente da Associação dos Diabéticos do Baixo Alentejo (Adiba), Luís Miguel Vieira, vê a situação como “preocupante” na região, garantindo que “os parcos recursos do SNS não permitem aos seus profissionais, por mais dedicados que sejam, chegar a todos os diabéticos de forma idêntica”.

 

Lucília Lourenço tem sentido na pele este excesso de doentes para o número escasso de profissionais de saúde, sentindo-se “abandonada” e a optar por ser seguida na Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), em Lisboa, por não ter “acompanhamento cá”.

 

 “No início não achei que estar em Beja fosse menos fácil do que noutros sítios, porque tinha um grande acompanhamento. Neste momento, sinto-me, sinceramente, um bocado abandonada, [porque], salvo erro, dia 2 de outubro fez dois anos que não tenho uma consulta da diabetes aqui em Beja. Na última consulta, que também fui pedir porque se calhar há outros dois anos que não tinha, ficou combinado que logo se marcava a próxima, mas essa nunca chegou”, afirma.

 

Em causa, segundo Lucília Lourenço, não está a qualidade da equipa da diabetes e sim a “falta de pessoal suficiente”. Carlos Marques confirma que este é “o principal problema”, tanto a nível hospital, como dos cuidados de saúde primários e que é preciso “fortalecer os elos e diminuir as distâncias entre o Hospital de Beja e os diversos Centros e Postos de Saúde”.

 

Para o coordenador de 39 anos, este olhar cuidado para a diabetes “através da formação dos profissionais da Ulsba, para que se uniformizem abordagens, tratamentos e seguimentos” permitirá atuar mais precocemente em fases menos avançadas, consciencializar e incluir os utentes diabéticos numa vida plena.

 

É POSSÍVEL “OLHAR PARA UM FUTURO MAIS RISONHO NA PESSOA COM DIABETES, ENQUANTO NÃO EXISTE CURA”

Apesar desta problemática e dos “maus acessos à capital de distrito e, consequentemente, ao hospital”, Carlos Marques afirma que, face às novas insulinas, essenciais para o tratamento da diabetes tipo 1, mais rápidas e com um perfil mais seguro, às novas tecnologias e às novas terapêuticas modificadoras de prognóstico é possível “olhar para um futuro mais risonho na pessoa com diabetes, enquanto não existe uma cura”

 

Para o coordenador da UCFD, é imprescindível continuar a otimizar e aumentar o número de teleconsultas e apoio telefónico específico e especializado, assim como, melhorar os recursos, transversalmente, entre os cuidados de saúde “de modo a que a prevenção da doença seja prioritária, em vez do tratamento das várias complicações, que têm um custo económico e social muito amputador”.

 

Maria Leonor, João e Lucília são algumas das vozes que tiveram como percalço a diabetes na sua rotina. O testemunho que deram ao “DA” é simples e revelador: a diabetes não os tem, eles é que têm a diabetes e, por isso, não se deixam condicionar por ela.

 

ADiBA ESTÁ EM “REMODELAÇÃO”

A Associação de Diabéticos do Baixo Alentejo (Adiba), que entrou em funcionamento em junho de 2018, está em “fase de remodelação” com o, ainda, atual presidente, Luís Miguel Vieira, a confirmar que estão à procura “de novas pessoas que assumam o papel de gestão desta importante associação”.

 

Para o engenheiro de 44 anos, os últimos “quatro anos foram de grande instabilidade nas ações da associação e do seu funcionamento”, mas acredita que estão criadas as condições para “numa maior dinâmica, se conseguir promover ações com vista à melhoria da qualidade de vida dos diabéticos e a uma melhor aceitação da doença pela comunidade”, porque “os diabéticos alentejanos não são diferentes dos demais no país e têm os mesmos anseios e os mesmos direitos”.

 

POLITÉCNICO DE BEJA COM DOIS PROJETOS NA SEMIFINAL DA ANGELINI UNIVERSITY AWARD! SOBRE A DIABETES

A farmacêutica Angelini Pharma tem a concurso, na semifinal, dois projetos da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Beja direcionados para a aproximação da comunidade diabética e das suas famílias aos profissionais de saúde.

 

Em “Contigo”, o projeto passa pela criação de uma aplicação de telemóvel para crianças e jovens diabéticos comunicarem “à distância” com as equipas multidisciplinares e capacitar a sua gestão da doença, enquanto em “Um Conhecimento F.A.N.T.A.S.T.I.C.O” o foco está na organização de sessões de literacia diabética e capacitação dos diferentes públicos-alvo para a problemática.

 

A votação online decorre até 29 de novembro.

 

Comentários