Diário do Alentejo

A Tentativa do Impossível
Opinião

A Tentativa do Impossível

Ana Paula Figueira, professora

12 de fevereiro 2020 - 16:20

O facto de ter revisto recentemente o filme “The Thomas Crown Affair” fez-me pensar na obra de Magritte. É extraordinária a forma como no quadro “O Filho do Homem” – que aparece no filme – Magritte articula o visível e o oculto, passando claramente a mensagem de que o que está à vista não passa de uma aparência da realidade, malgrado queiram ver a realidade pela aparência. É com esta realidade hipócrita que convivemos todos os dias. E fazer alguma coisa para mudar isto?

 

Aos 20 anos a ânsia de ter novas experiências é grande; o incógnito, o misterioso provoca uma adrenalina que se traduz na vontade de intervir, de participar, de querer mudar as coisas e o mundo. Depois, chegada a altura da colisão, ao ser percebida a crueza da realidade, tendem a prevalecer o valor, a firmeza e a habilitação para suportar e reagir habilmente ao choque. Se a vontade de mudar, ainda assim, permanece, coloca-se a questão: será que é genuína? Ou será que o príncipe de Salina tinha razão quando afirmou que "para que tudo fique na mesma, é preciso que tudo mude"? Uma pessoa muda a sua forma de ver e de estar no mundo porque decide fazê-lo e tem poder para isso; um grupo muda a sua forma de estar e de se relacionar com o que está à sua volta porque quem o governa tem poder para isso.

 

Assim, a mudança estrutura-se em torno da existência ou não de poder – determinado pela assimetria de relações – e do respetivo governo – quando o exercício do poder adquire sentido e leva à ação. É atribuída ao padre António Vieira a frase: “As varas do poder, quando são muitas, elas mesmo se comem, como famintas sempre de maiores postos”. A sedução do poder é, aparentemente, embriagadora e insaciável. De facto todos conhecemos exemplos de pessoas que, ao deterem alguma autoridade, desejam cada vez mais, perdem o contacto com os problemas e com as necessidades reais, dissipando-os, banalizando-os e remetendo-os gradualmente para o esquecimento… Escravizados por essa ambição, esquecem o objetivo de fazer coisas realmente boas. Para os outros. Mas não para si: a mudança que promovem é a que os beneficia, achando que o fazem com total legitimidade.

 

A mitologia grega resolveu isto da seguinte forma: chamou “húbris” à superação dos limites pelos seres humanos, mobilizados por uma excessiva autoconfiança, sustentada pela arrogância, pelo orgulho e pela ambição. Havia depois o castigo dos deuses – “némesis” – cujo efeito era fazer com que o indivíduo que cometeu “húbris” voltasse ao ponto em que estava antes de cometer a transgressão. Hoje, o contexto é diferente: quem comete “húbris” nem sempre é punido, sendo até normal que atraia os chamados aduladores, gente que faz da “húbris” a sua forma de estar na vida, que sabe aproveitar certas oportunidades, que reforça o que tem poder e influência, com o fim de obter benefícios comuns.

 

Desta forma, provocar e concretizar a mudança num sentido efetivamente altruísta é um processo muito difícil e complicado. E, face a isso, surge um enorme vazio, onde as necessidades, as dificuldades e as carências dos indivíduos são cada vez maiores. Assim como a falta de esperança... Volto a Magritte, tal como comecei. Mas agora à “Tentativa do Impossível” ou à “completa” incompletude de todas as coisas.

Comentários