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Hugo Cunha Lança, doutor em Direito

14 de novembro 2019 - 12:25

Quando fazes o mesmo trabalho há demasiado tempo parece que a profissão se  entranha em ti. Ou então, é uma daquelas múltiplas coisas estúpidas que só acontecem comigo e eu não tenho desenvoltura intelectual para distinguir aquilo que é a minha exceção da regra. Serve o introito para afirmar que, depois de 21 anos a lecionar, tornei-me algures pelo percurso um professor formatado a um determinado tipo de raciocínio. E, não sofresse eu de insónias e outras coisas estranhas, naqueles momentos em que o sono vagueia em parte incerta, encontro-me em reflexões, quase sempre absurdas. Excecionalmente, mas mesmo muito excecionalmente, divago sobre coisas que não são absolutamente néscias, mormente sobre o papel de um professor no século XXI.

 

Uma primeira conclusão foi que o substantivo foi mal escolhido, porquanto no século XXI os professores já não usam papel porque somos uns tipos todos tecnológicos (conclusão absurda, sem o menor interesse para a premissa subjacente a este texto). Mais pertinente será aquilatar a missão do professor numa sociedade em que a informação jorra de todos os lugares e está acessível a todo o momento. Dessarte, longe vão os tempos em que o professor era um repositório de informação que transmitia aos alunos, com maior ou menor imperícia, na expectativa que os discentes dispusessem de valências mentais para transformar a informação recebida em conhecimento adquirido. E, sobretudo, que um dia, mais tarde ou mais cedo, esse conhecimento lhes fosse útil nas suas deambulações pessoais e profissionais (porque nunca entendi a treta de que formamos profissionais e não pessoas).

 

Sucede que, enquanto estávamos distraídos a discutir futebol e a ver reality shows, o mundo sofreu uma alteração copérnica à qual nenhuma profissão pode ficar imune nem ignorar olimpicamente: com efeito, é insofismável que hoje os professores não são monopolistas do conhecimento que jorra por múltiplos meios, incontrolavelmente, numa proliferação inaudita na história. Esmiuçando a premissa, e oferecendo-me como cobaia, quando, há duas décadas, iniciei a minha atividade de docente tinha lido todos os manuais da minha área específica e parte significativa dos artigos publicados pelos autores nacionais, bem como as obras de referência internacionais.

 

Hoje, tal é materialmente impossível: quotidianamente são publicados novos livros, há centenas de teses de mestrado, dezenas de teses de doutoramento, centenas de artigos (muitos deles publicados em revistas estrangeiras devido às esquizofrénicas regras de avaliação), ao mesmo tempo que crescem desmesuradamente as obrigações burocrático-administrativas que nos exigem horas e horas de produção de lixo (em caso de dúvidas, fica o repto para os leitores me acompanharem num dia de trabalho e mesurar a quantidade de tempo que perco a fazer coisas sem a menor utilidade/interesse). Ao que acresce todos os constrangimentos orçamentais e a imensa desvalorização da atividade docente que hoje, mais do que nunca, é exercida por espírito de missão e paixão pelo ensino (ou, devia ser, porque não sou obtuso nem ignoro que muitos colegas se dedicaram à sábia arte de fazer o menos possível).

 

Dito isto, questiono-me o que é um professor no século XXI. Estou absolutamente convicto de que atualmente compete ao professor ser a mosca socrática da metáfora platónica: provocar os alunos, oferecer-lhes horizontes hermenêuticos, suscitar a sua curiosidade, procurar guiar os seus caminhos para desbravar a informação, inspirá-los na procura da verdade e do conhecimento. Caminhar ao lado deles (porque já não somos primus inter pares) e colocar a nossa experiência ao serviço de cada um deles para que num diálogo entre iguais seja possível encerrar o ano letivo com o sorriso tranquilo de que algo de nós ficou pertença deles.

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