Diário do Alentejo

O pater das alcunhas alentejanas
Opinião

O pater das alcunhas alentejanas

Vanessa Schnitzer

15 de dezembro 2023 - 10:51

“Aqui, onde entre os mares surgiu a ilha, uma pedra de altar subitamente erguida, aqui, sob o negro céu, acende Zaratustra o seu fogo das alturas, sinais de fogo para navegantes sem rumo, ponto de interrogação para os que têm resposta...” (trecho do poema “Sinal de fogo”, de Friedrich Nietzsche, 2000: 53).

A 24 de novembro quis o destino que rumasse até ao Convento dos Remédios [em Évora] para assistir à celebração póstuma prestada ao mestre Francisco Martins Ramos, no âmbito da iniciativa “Em Ebura: a conversa que falta”, destinada a evocar a memória dos eruditos que marcaram o Alentejo e o mundo. Confesso que o homenageado terá demorado a chegar à minha perceção, distraída pelo peso dos acontecimentos do dia. Até que dei graças por estar presente na tão simbólica e significativa efeméride por se tratar de um enorme vulto, que terá ficado imortalizado na memória das gentes eborenses. Por via dos oradores convidados, a diretora Regional da Cultura, Ana Paula Amendoeira, Vitorino Salomé e Fernando Mão de Ferro, e de alguns familiares e amigos, foi possível aceder a algumas das várias dimensões do grande homem escondido por detrás da obra.

Pelo lugar que ocupa no mapa da cultura eborense, dei-me conta do tamanho da perda, irreparável. Para quem desconhece, Francisco Martins Ramos foi das personalidades que mais contribuiu para o estudo do território cultural do Alentejo. Professor emérito da Universidade de Évora, catedrático de Antropologia, foi responsável pela criação de vários filhos científicos. “A capacidade notável de descodificação de várias áreas do saber científico, normalmente inacessíveis, que ficam aprisionadas por detrás das muralhas da Academia” foram as palavras de Ana Paula Amendoeira para descrever as habilidades do conversador arguto, torrentoso, que conseguia retratar exatamente aquilo que pensava e observava. E estes quadros literários que descrevia, sempre temperados com a fineza do humor, como defendia Fernando Mão de Ferro, e do bon vivant, como acusou Vitorino Salomé, o ingrediente indispensável para sobreviver aos anos cinzentos do regime de Salazar.

Fui abençoada com o inestimável privilégio de o conhecer numa das primeiras edições do projeto “Coisas de Vinho”. Após a tertúlia, a feliz circunstância de o sentar ao meu lado no jantar que se seguiu. Foi memorável, uma experiência, que a mente jamais será capaz de apagar. As várias iguarias, temperadas pela vastíssima cultura e pelo génio entusiástico que conseguia captar com um humor colorido o imaginário alentejano, cristalizado no imortal Tratado das Alcunhas Alentejanas. Despertou-me tanto interesse, que lhe perguntei como poderia adquirir a obra. Ao qual, retorquiu com a oferta de um exemplar, que me foi entregue, em mãos, pelo próprio na semana seguinte.

Agradeço mais uma vez ao vinho por este encontro extraordinário. Fez-me lembrar do meu rico e santo pai, quando me dizia: “Minha filha, nunca fiz amigos a beber água ou leite”. Passado cerca de duas semanas, o meu espírito foi abalado com a notícia trágica do seu falecimento. Não consegui evitar o choque e o desalento. Uma tristeza que o tempo se encarregou de transformar em gratidão, por ter sido atravessada pela verdadeira luz cósmica que iluminou o Alentejo e além.

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