Diário do Alentejo

Poucos mas bons (sobre a Amizade)
Opinião

Poucos mas bons (sobre a Amizade)

Jorge Martins

15 de dezembro 2023 - 09:15

Não tenho um melhor amigo.

Nunca gostei dessa designação.

A amizade, para mim, não é passível de rankings.

Desde pequenos somos educados para fazer amigos, para sermos amigos.

Desde a “escolinha” que diariamente convivemos com os “amiguinhos”, mesmo sem noção do conceito que, por essa altura, se resume apenas a parceiros de brincadeira.

Crescendo um pouco mais, começa a seleção. Pelos gostos, pela identificação, pela necessidade de afirmação, pela oportunidade, ou por mais uma mão cheia de motivos. Chega a altura em que a melhor amiga de hoje, amanhã já não quer ser sequer amiga, quanto mais a melhor. Talvez mais entre as meninas, de forma geral, esta é uma tendência. No geral, aos meninos basta que falte um para o jogo, que esse, sendo o melhor ou pior jogador, será sempre o melhor amigo, naquele momento, facilmente substituído sem rancor por outro amanhã. A vida segue...

Já no final do ciclo preparatório (que não estou bem certo que por estes dias já não tenha outro nome) chega o primeiro momento de separação, que conduz estas amizades a um primeiro grande teste, uma vez que as opções de ensino nem sempre permitem que a jornada continue a ser feita lado a lado, diariamente. Aqui, já começamos a perder alguns pelo caminho, numa prova de que a intensidade e a solidez afinal não eram companheiras.

Final do secundário. Mais uma prova de fogo. Os caminhos das relações voltam a encontrar um cruzamento em que a prioridade é seguir, mesmo que por estradas diferentes.

A fase académica da universidade reposiciona o contador das amizades numa espécie de estaca zero. Acompanhando um outro estágio de maturidade, aquilo que nasce aqui pode ter vários caminhos, alguns para a vida, outros sem margem para viver além daqueles loucos anos.

Fazem-se promessas, trocam-se vivências (e muito mais), partilham-se experiências memoráveis e criam-se memórias para a vida. Se tivermos sorte, conhecemos gente de vários pontos, o que augura uma aparente âncora para que algumas relações se perpetuem no tempo, pois, como é evidente na altura, teremos sempre uma porta aberta em cada canto.

Mas também esta fase termina.

E começa outra... A da vida real.

E se todas estas fases vão sendo seletores naturais das relações, a fase em que decidimos ser pais é das mais genuínas e ditadoras formas de fazer a separação final entre o trigo e o joio. Entre quem segue e quem fica. Entre quem está e quem nunca esteve por inteiro. Já diz o ditado que “quem meus filhos ama, minha boca adoça”, mas há quem não seja muito dado a estas calorias.

As fases são isso mesmo: fases. Cada qual deve ser vivida como tal e, mesmo tendo alguns fios condutores comuns, não devem ser encaradas como definitivas. A cada uma delas pertencem pessoas que lhes dão corpo, e alma. Alguns são amigos, alguns atravessam várias dessas fases ao nosso lado, outros são apenas parte integrante e fundamental de cada uma mas o seu papel resume-se àquilo.

E não interpretar a vida e a amizade desta forma só pode levar ao sofrimento. Sim, porque também na amizade há sofrimento tanto ou mais difícil de gerir, por vezes, do que o de amor.

A (matur)idade dá-nos ferramentas para uma melhor avaliação, uma triagem mais eficaz. Traz-nos a capacidade de entender o que queremos de quem.

Um erro frequente, além do já mencionado ranking, é considerar que todos os nossos amigos servem para o mesmo. Não podemos querer o mesmo, nem dar o mesmo, de e a todos os que chamamos de amigos. E até esta denominação deve ser usada com critério, rigor e verdade para não cairmos na injustiça de uma classificação mal feita que coloque “todos no mesmo saco”. Seria, até, desrespeitoso para aqueles que querermos nesse altar da amizade.

Tenho muita sorte. Não tenho um melhor amigo mas tenho os melhores amigos.

Desde os que vejo com frequência aos que não vejo há anos. Desde os que estão sempre, aos que estão (de certeza) para sempre (por mais arriscada que seja esta afirmação, por mais que a vida já tenha provado que há improváveis, arrisco, pela fé que tenho nas pessoas, esta expressão). Há gestos que não se esquecem. Que não diriam nada a alguns e que para outros são o passaporte para essa certeza.

Se há coisa que me faz muita confusão são os eventos em que, numa dança quase mecânica e independentemente do número de intervenientes, homens e mulheres se dividem e ocupam um espaço interdito ao género oposto. Bem sei que há conversas que são, tendencialmente, mais propícias de se ter com pares com quem nos identificamos mais. Mas não será isto reduzir os nossos skills sociais em prol de uma espécie de imposição em que quem fica de fora é visto como dissidente, desenturmado, pouco interessante ou antissocial? Ouvi há dias, numa entrevista, alguém perguntar se era possível uma Amizade (aqui com uma maiúscula propositada) entre um homem e uma mulher. A resposta de uma das entrevistadas foi prontamente um “não”, pois entendia que haveria um momento em que, pelo menos, uma das partes equacionaria elevar a relação a um outro patamar. Nada mais errado, no meu entender e da minha experiência, mas posso ser eu que estou mal…

Não aprecio segmentações. Não lido bem com exclusividades. Entendo ainda que a amizade não tem barreiras mas deve ter limites.

Apesar desta aparente lucidez na gestão, a realidade é que ainda hoje não me é fácil entender algumas amizades que deixaram de o ser. Aceito. Prossigo. Guardo o que há a guardar e isso não contempla culpa nem rancor. Penso, sim, se poderia ter sido de outra forma. Onde falhei. Se voltaria atrás. Se faz sentido correr atrás. Se foi exigência ou displicência.

Mas concluo sempre, ou quase sempre, que foi o que tinha que ser.

Celebrar a vida é celebrar as pessoas que nos rodeiam. Celebrar os pequenos gestos. As grandes ações. As inúmeras memórias. O maior comprometimento com esta coisa da amizade, digo-vos eu, é vivê-la sem compromisso e de forma incondicional.

 

Ilustração| Susa Monteiro/Arquivo

 

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