Diário do Alentejo

Música clássica e poesia
Opinião

Música clássica e poesia

Vítor Encarnação, professor

26 de outubro 2023 - 14:00

Devia ter os meus doze anos, não mais do que treze, um saquinho de pano cheio de berlindes, uns de vidro arrancados às garrafas dos pirolitos, bons para abafar, outros de casquinha, às cores, soldados de plástico numa guerra de três covas abertas no chão, num bolso dois piões, um com um bico suave, para exibição, arredondado no torno de uma oficina, um dançar pianinho na palma da mão, outro com um bico de prego, afiado, para combate, um bater bruto na terra, noutro bolso vinte ou trinta cromos do Mundial da Argentina para a troca, as ruas cheias de moços, de manhã à noite, correndo, saltando, os pés que não seriam lavados nessa noite, nem na outra, quase de certeza só no domingo, as conversas pequenas, incapazes de irem mais longe do que o chão, do que a rua, do que se ouvia lá em casa, dos filmes de cobóis, da Gabriela e do Nacib, não conhecíamos muito mais, éramos fruto da fraca circunstância cultural, podia-se ir de porta em porta, de rua em rua, éramos todos iguais, todos vazios de outros conhecimentos e de outras sensibilidades. Todos, menos um. Havia um moço, diferente de gestos e de roupa, que nos disse que gostava de música clássica e de poesia. Tinha vindo para a nossa escola nesse ano. E nós gozámos com ele, chamámos-lhe nomes, fizemo-lo chorar, expulsámo-lo do nosso mundo. Coincidência ou não, já não regressou em outubro. Sinto tanta raiva de não me lembrar do seu nome, é que eu queria pedir-lhe desculpa e dar-lhe um poema que escrevi de propósito para ele. 

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