Diário do Alentejo

DIGO EU…: Música para os meus ouvidos
Opinião

DIGO EU…: Música para os meus ouvidos

Jorge Martins

16 de outubro 2023 - 09:55

Poucas coisas têm o poder de nos tirar do sítio onde estamos, a dado momento, transportando-nos para outro lugar, sem que tenhamos de nos mexer. A música é, e será sempre, uma delas.

Não existem músicas certas. Não existem músicas melhores. Nem piores. Existem gostos, estilos, géneros. Mas existem, essencialmente, histórias por detrás de cada uma. Existem memórias. Existem os tais lugares da nossa história para onde vamos imediatamente quando as ouvimos. E, porque não, lugares imaginários ou que o foram apenas na nossa cabeça, onde gostaríamos de estar, cujo vislumbre é motivado e suportado por determinada melodia (as “tais” músicas que nos fazem sonhar).

Mas não é só este o verbo que a música desperta.

A música faz-nos viajar. Chorar. Levantar. Reviver. Sorrir. Pensar. Parar, essencialmente. Numa paragem que nos faz voar, mesmo que com os pés bem assentes no chão.

Sempre que posso, trabalho ao som da música. É uma forma de isolamento mas nunca solitária. Há dias em que a música acompanha a hora do banho. A hora de arrumar a cozinha. O caminho para o trabalho. E sempre, inevitável e irremediavelmente, nas viagens de carro.

Não imaginamos um vídeo lamechas sem uma música da mesma categoria. Ficaria vazio e sem o mesmo peso. Aliás, para testar esta teoria, tentemos fazer uma montagem fotográfica que apela à emoção, mas coloquemos um heavy metal como música de fundo e vejamos como altera significativamente as reações. Imaginemos uma noiva a entrar na igreja e percorrer todos aqueles metros até ao altar. Imaginam esse momento sem música? Mesmo que não seja a marcha nupcial, o “Avé Maria” ou o “Aleluia”, a verdade é que o esplendor daquele momento se deve muito ao som que o acompanha. Quanto mais alternativa for a escolha, mais marcante será, diria, o momento. Há momentos feitos de música e músicas feitas para momentos. Sou da era do vinil. Não como opção vintage-moderna-trendy, mas como única solução. Dos muitos vinis que tinha, lembro-me de gastar até à exaustão (e de lhe fazer uma bolha com a lâmpada do gira-discos) o do “Areias”, interpretado por Suzy Paula. Depois as cassetes, gravadas e regravadas. Mais tarde, os CD, coleção que ainda hoje faço questão de aumentar, mesmo que se revele uma “crença” cada vez mais difícil de alimentar, face a este mundo de consumo tão instantâneo e de curto prazo, que a indústria se vê forçada a acompanhar.

A música tem hoje a vantagem de não trazer surpresas, se assim não quisermos, tanto mais que nos damos ao luxo de escolher a nossa playlist, não estando sujeitos à decisão de terceiros. Temos a possibilidade de, num só clique, passar à frente o que não corresponde, naquele momento, ao que nos pede a nossa mood. Dir-me-ão que isso tira o encanto. Digo-vos eu que isso nos abre uma infinita coleção de possibilidades, que só tendem a adoçar a nossa jornada com uma banda sonora à altura do que idealizamos para a nossa história, a cada momento.

Mas isso não significa que a surpresa não possa fazer parte. Quem nunca vociferou a expressão: “Xiii, há quanto tempo não ouvia esta música”. E, este momento, genuíno e inusitado, leva-nos imediatamente para algum lugar da nossa história. Porque se nos faz “saltar da cadeira”, é porque traz atrelado um momento qualquer da nossa vida. Bom. Menos bom. Mas um momento. Marcante.

A música traz-nos pessoas. Traz-nos vivências. Traz-nos saudade.

O número de sensações que aqueles três/quatro minutos encerram pode ser infinito. A lista certa pode até levar-nos a uma espécie de montanha russa de emoções. E isso é bom. Só pode sê-lo. É magia.

Tenho aquilo que se pode chamar de uma elasticidade de ouvido. Sou das gavetinhas, das pastas e pastinhas. Das etiquetas. Da organização que roça o transtorno. Mas nas 12 horas e 56 minutos que compõem atualmente a minha playlist, devidamente etiquetada naquela ferramenta cujo nome não vamos aqui pronunciar para não evidenciar preferências, podemos encontrar um pouco de tudo (sendo que, numa medição a olhómetro, diria que a língua portuguesa poderá ganhar por maioria absoluta). Não acho que existam guilty pleasures. Existem estados de espírito e músicas que se encaixam em cada um. Existem vários estilos e músicas que não aprecio, que não têm lugar nesta gaveta tão heterogénea. Mas o facto de pensar que terão este papel tão relevante e remissivo para alguém, faz com que os respeite da mesma forma.

Vivemos numa era em que facilmente repugnamos o que não entendemos, ou não queremos entender, atribuindo a tudo o que não nos serve o rótulo de lixo. A música não é exceção.

Porém, o peso da sociedade é também aqui ditador. Dificilmente vamos admitir que ouvimos (e gostamos de) algo que a sociedade, no geral, descarta. Mas por estes dias, face a esta posição, encontramos também, por oposição, uma dificuldade em admitir que ouvimos com gosto algo que é mainstream, porque “fica mal” sermos equiparados à “carneirada”.

Ficamos, por isso, reduzidos a gostar publicamente daquilo que fica bem, sem sabermos bem o que isso significa na realidade.

Ainda hoje, numa conversa em contexto laboral, alguém disse cheio de si, e numa expectativa de encontrar apoio, que odiava (verbo forte este...) ouvir tunas a tocar. Aqui encontramos um outro problema, o da generalização. Para quem, como eu, esteve nesse meio “alguns” anos, é difícil aceitar esta afirmação quando sei, de fonte segura, que existem de facto grupos de estudantes de grande qualidade que proporcionam espetáculos pelos quais vale muito a pena pagar para assistir. E, mais, o trabalho por detrás de cada subida a palco, se bem feito, já vale por si só o respeito de todos.

E é neste respeito que insisto. Não gosto de metal. Não simpatizo com hip hop. Não sou fã de música clássica (ou talvez não lhe entenda a profundidade). E poderia aqui continuar com os estilos que estão longe das minhas preferências. Mas, salvo raras exceções que não têm grande margem para esta advocacia do diabo, diria que respeito o trabalho, o amor e a entrega com que são feitos e, mais, o facto de terem público a quem dizem muito. Sem grande esforço entendo que também esse público merece ser levado numa viagem no tempo que será, sempre, de cada um.

E este princípio é algo que gostaria de acreditar que é transversal às restantes esferas: o do respeito pela escolha. Seja na música, à mesa, na ficção, no desporto, ou, porque não, na cama (mas isto fica para uma outra oportunidade...).

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