Diário do Alentejo

O Arménio
Opinião

O Arménio "Caldaça"

Manuel Camacho, engenheiro

03 de junho 2020 - 15:00

O Arménio foi meu vizinho na minha infância. Nascido de uma relação não assumida, desde muito novo encontrou como ocupação a de engraxador, já que fisicamente não era muito robusto, pois as fomes recorrentes certamente para isso contribuíram. Relembro o seu regresso a casa ao fim da tarde, com o seu instrumento de trabalho debaixo do braço, a sua caixa de engraxador envernizada que rivalizava com as demais existentes na nossa vila, pois as outras eram caixas improvisadas e sem aquele brilho.

 

Na década de 60, muitos foram os apelos para a debandada das nossas gentes para Lisboa e seus arredores e o Arménio encontrou facilmente ocupação na sua arte, não já deambulando pelas ruas da cidade, mas em local fixo numa empresa sediada na Praça D. João da Câmara, defronte da Estação do Rossio. Quando voltei a encontrá-lo, nos finais da década de 70, constatei de novo a sua simplicidade e o seu amor à sua terra traduzida nas saudades que sentia. Sempre perguntava pela minha avó Mariana, certamente porque relembrava os afagos de estômago que ela no passado lhe tinha proporcionado.

 

Quando se reformou, o engraxador deu lugar ao cauteleiro, justamente porque a sua reforma não deveria ser famosa. A partir daí iniciou-se um ritual. Sempre que ia a Lisboa, geralmente acompanhado, era obrigatório ir à baixa encontrar o Arménio e com ele degustar uma ginginha e comprar-lhe normalmente um bilhete de lotaria (verdade seja dita que nunca fomos agraciados com qualquer prémio).

 

Alguns tempos depois o bom do Arménio deixou de circular entre o “seu mundo”… Rossio, Praça da Figueira, Rua Augusta, Arco do Bandeira, Rua dos Sapateiros. Circulou a versão de que o nosso amigo tinha sido forçado a abandonar o seu poiso de mais de 50 anos no seu bairro popular de Lisboa e centrifugado para a “outra margem”, certamente a troco de uma mísera compensação.

 

Finalmente, passados alguns tempos, voltou, já muito debilitado, à sua última ocupação, revelando muitos dos cansaços acumulados e sobretudo deixando transparecer a sua mágoa pela exigência de diariamente calcorrear os caminhos dolorosos da sua desventura. Pressentimos que o seu fim se aproximava, tal como veio a acontecer passados alguns meses.

 

Hoje, quando ouvimos as notícias que revelam que o alojamento local se encontra nas “ruas da amargura”, refletimos se o percurso trilhado nos últimos dez anos foi compensador, por um lado para quem de forma insensível promoveu a irradiação dos moradores dos bairros populares provocando o desenraizamento de muitas famílias e tornando esses mesmos bairros em locais incaracterísticos e deserdados do que é mais importante, que são os seus moradores. E, por outro lado, os malefícios que foram causados aos desencontrados da sorte que de forma abrupta foram arrastados no processo de gentrificação a que algumas cidades do nosso país assistiram.

 

Este é o relato de um único drama. Certamente que identifica um problema com uma dimensão mais extensa sobre a qual urge refletir com o discernimento que os tempos presentes exigem.

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