Diário do Alentejo

E depois do adeus? A nossa vida pós-pandemia

02 de maio 2020 - 17:25

Embora habituados ao isolamento e ao silêncio (devido ao despovoamento que atingiu a região nas últimas décadas), os alentejanos vivem, agora, dias de maior solidão. Os largos que reuniam os pouco habitantes das povoações ficaram vazios, e não há conversas e petiscos na coletividade da aldeia ou na taberna do monte, ao fim da tarde. Acontecimento extremo que convida a refletir sobre o sentido da vida, ou para a necessidade de equilíbrio entre o homem e o ecossistema, dependendo da perspetiva de cada um, a pandemia provocou uma reorganização das sociedades quase da noite para o dia. Para onde vamos, quando a covid-19 passar?

 

Texto Júlia Serrão

 

Não é o tipo de acontecimento presente na memória das pessoas, mas ao longo da história sempre houve pandemias. A peste negra, no século XIV, provocada por uma bactéria, terá matado cerca de dois terços da população europeia. A pneumónica, também conhecida por gripe espanhola, causada pelo vírus H1N1, segundo estudos recentes dizimou de 50 a cem milhões de indivíduos entre janeiro de 1918 e dezembro de 1919, “com a particularidade de matar sobretudo a população jovem, com idades compreendidas entre os 25 e os 30 anos”, segundo o historiador e professor Constantino Piçarra, a trabalhar no Museu da Ruralidade, em Entradas, Castro Verde.

 

Se tivermos em conta que a maior parte das mortes por covid-19 no mundo é de pessoas acima dos 60 anos, esta será a característica diferenciadora das duas doenças infecciosas separadas por um século, idênticas em vários outros aspetos. “Os tempos históricos não têm paralelo, mas não há grande diferença na forma como ambas se desenvolvem, por fases, e como as autoridades as combatem”. 

O historiador diz que, à semelhança do que hoje acontece para evitar a disseminação da covid-19, durante a gripe espanhola foram adotadas medidas como o afastamento social, o uso da máscara e a quarentena. Jornais da época dão conta, por exemplo, que na estação de caminho de ferro de Serpa “um aviso proibia a entrada de forasteiros na vila, que ficava acessível apenas a quem ali tivesse família, sendo, no entanto, obrigado a um período de quarentena determinado pelas autoridades sanitárias”. A epidemia terá tido um impacto enorme em todo o distrito de Beja, atingindo o ponto alto em outubro de 1918, e tendo como foco de infeção o Quartel de Infantaria 17. 

 

O fim do mundo pós-moderno como o conhecemos  Hoje, para fazer face à propagação da covid-19, a sociedade global foi obrigada a reorganizar-se quase de um dia para o outro, operando-se alterações profundas dos costumes ao nível do quotidiano. Entrou-se em modo de teletrabalho, o ensino (e algum comércio) passou a ser feito à distância, e fomos afastados da generalidade das experiências sociais que nos davam tanto prazer.

 

Na opinião da socióloga Sandra Saúde estamos a viver “um choque tremendo à nossa base civilizacional, ou pelo menos na forma como nos habituámos a viver no chamado mundo pós-moderno, regulado pela rotina diária à volta do trabalho, pelo consumismo e globalização, e pelo ritmo acelerado do dia a dia, que não nos dava tempo para pensar, mas trazia algum conforto em termos de cadência e forma de estar”. Um embate, no entanto, “necessário e que já se previa, pois havia muitos sinais de desequilíbrio entre a humanidade e o ecossistema”. 

 

A investigadora do CICS Nova - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, e professora adjunta do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja), comenta que nas últimas décadas ter-se-á andado com a ilusão de que uma combinação “de industrialização, tecnologia, biotecnologia e descoberta de várias nuances tecnológicas” nos daria o conforto e a defesa para todos os males. “Parecíamos indestrutíveis, não tínhamos a ideia da finitude”, observa, lembrando que não temos “uma educação para o risco, para o que nos incomoda e fere”. E, portanto, o que está a acontecer é, “por um lado, uma espécie de alerta para que a sociedade reveja formas de estar, de consumir e equilibrar recursos, e, provavelmente, não ser tão predadora”. E, por outro, “um confronto com essa finitude”. A atual pandemia sobretudo, “veio mostrar que não podemos dar nada como adquirido, e isso é muito difícil de enquadrar”. 

 

(Re)descobrir o que é essencial Kierkegaard dizia que “para o cristão, todas as derrotas se podem tornar vitórias”. A frase do filósofo dinamarquês é lembrada pelo padre Manuel António Guerreiro do Rosário, para dizer que concorda com ele. Acredita que esta pandemia, “pelas mudanças que obrigou a introduzir na nossa vida pessoal e coletiva, para além do sofrimento que é evidente e nos toca a todos, convida a repensar a vida e a (re)descobrir aquilo que, de facto, é essencial. E para os cristãos, o essencial são as pessoas e não as coisas”. 

O padre de Beja, que é pároco de Grândola, observa: “Precisamos de cultivar a virtude da paciência uns com os outros, dando mais tempo à relação humana, pessoal, familiar, profissional e social”.

Acredita que há muitas lições a tirar desta experiência limite que hoje vivemos, no contexto da covid-19. Mas, diz que “uma lição que importa aprender bem, é que somos seres relacionais, e não ilhas, e, por isso, há que refazer e reforçar a relação com este planeta, casa única da família humana, e com aqueles que o habitam, homens, animais e plantas, assim como todos os elementos que o compõem. E para nós, que acreditamos em Deus, restabelecer a relação com Ele é fundamental”. 

 

Depois da pandemia passar será tempo de repensar uma sociedade que, não abrindo mão de “um conjunto de conquistas civilizacionais, pondere seriamente a noção de equilíbrio entre o homem e o ecossistema”, observa Sandra Saúde, que não acredita que se venham a operar todas as mudanças necessárias. Diz ser provável que o cidadão comum saia deste confinamento com a noção de que é urgente cultivar outros valores e mudar o ritmo de vida, mas, se calhar, “o abanão” ainda não é suficientemente forte para mudar o sistema. 

No sentido prático, entre outras coisas é provável que o recurso ao teletrabalho se generalize nas profissões e funções que o permitam. Ou seja, que não exijam a presença física permanente e tornem possível o trabalho via internet. Já em matéria de ensino, e apesar de se reconhecerem algumas mais-valias no modelo à distância, é expectável, e desejável, o regresso às salas de aula reais, “pois o modelo de aprendizagem tem que estar centrado no aluno, fazendo-se muito na presença dele”, defende a socióloga que também é professora universitária. Conclui a este respeito: “A escola é mais do que um formato. É a interação, é o processo de crescimento com o aluno, olhar nos olhar e estar lá para pegar na mão se for caso disso.”

 

Exprimir o afeto à boa maneira latina 

A seu tempo, quando o perigo deste contágio invisível que tanto nos angustia já não existir, o relacionamento social tenderá a voltar à normalidade ‘latina’, prevê a socióloga. Voltaremos a tocar-nos, a cumprimentar-nos com apertos de mãos calorosos, pancadinhas nas costas, abraços e beijinhos, porque essa é a nossa natureza. “No fundo toda a gente está desejosa de voltar para as enchentes da praia”. Ao princípio com algum receio, mas depois de forma natural e mais descontraída. De qualquer forma, “dependendo do tempo que a situação durar, e enquanto houver dúvida relativamente à vacina e ao medicamento” para combater a pandemia, haverá receio, e algumas pessoas poderão mesmo “desenvolver tendências hipocondríacas”. Tudo é expectável no quadro do período pós-pandemia que também “é pós-traumático”. 

 

Mas antes do futuro, há o presente. Uma breve análise do comportamento humano durante este período, leva Sandra Saúde a constatar que há medo (de ser-se infetado), mas também uma tendência para olhar algumas populações com desdém, porque potencialmente podem ser foco de doença. É o caso dos trabalhadores agrícolas imigrantes e da população cigana, que na partilha do espaço público são mantidos à distância. A socióloga receia que um eventual foco de infeção no seio destes grupos possa “dar razão ao medo e intensificar a tendência para alguma xenofobia”, que já se faz sentir. Sob este clima de visível tensão, a desconfiança tornou-se terrivelmente presente, mesmo entre pessoas com uma relação próxima, que evitam cruzar-se. 

 

Embora habituados ao isolamento e ao silêncio (devido ao despovoamento que atingiu a região nas últimas décadas), os alentejanos vivem, agora, dias de maior solidão. Os largos que reuniam os pouco habitantes das povoações ficaram vazios, e não há conversas e petiscos na coletividade da aldeia ou na taberna do monte, ao fim da tarde. A covid-19 veio interromper a expressão dos laços de vizinhança, à volta dos rituais que alimentaram gerações. “Esta impossibilidade de estar com o vizinho porque ele pode ser portador de algum problema que ponha em causa a sua própria saúde, isola-nos ainda mais”.

Para a socióloga, o que mais constrange esta relação mais é o medo. Mas o que está a paralisar mais ainda muitos deles (a população mais envelhecida, especialmente) é a incapacidade de “perceberem o que se passa e o que se vai passar”. 

Precariedade do trabalho e alterações laborais 

Constantino Piçarra é de opinião que a peste negra e a pneumónica não foram geradoras de alterações ou ruturas na sociedade pós-crise, apenas potenciaram alguns aspetos das mudanças e conflitos que já vinham a acontecer, como por exemplo a desagregação do sistema feudal na primeira. Prevê igual panorama no pós-pandemia da covid-19. “Todas as contradições que vão surgir, de alguma maneira com mais intensidade ou mais abertura à luz do dia, já estão na sociedade europeia e na portuguesa”. Por exemplo, as mais imediatas, que dizem respeito à precariedade do trabalho e às alterações em termos de relações laborais, vão estar na ordem do dia. 

 

Comenta que a covid-19 acentuou o teletrabalho, que tem todas as condições para se destacar no período pós-pandemia, e com ela ultrapassada, pois responde a vários níveis de necessidades: “Isola os trabalhadores em casa, facilita o contrato individual em detrimento do coletivo que se faz através dos sindicatos, pode possibilitar a redução do salário, porque o trabalhador em casa eventualmente precisa menos de dinheiro para produzir a força de trabalho intelectual e, ao estar confinado, o elemento associativo que é determinante nos movimentos de contestação sociais, quer sejam de forma espontânea quer sejam organizadas do ponto de vista sindical, serão muito mais dificultados”.

Por outro lado, vai haver necessariamente uma explosão de contestação social “porque o rombo na economia vai ser enorme”. Sobretudo nas pequenas e médias empresas, “onde assenta 95 por cento do tecido empresarial português”, que já estão com dificuldades extremas neste momento. “E se a solução para elas é mais dívida, mesmo que seja dilatada no tempo, não lhes vai resolver os problemas em que caíram durante este período”. Antes adiá-los. 

 

O desequilíbrio entre nações no contexto europeu  A desunião dentro da União Europeia (UE) é mais uma realidade que tem vindo a agravar-se no quadro da pandemia. Não se sabe muito bem que consequências pode trazer num futuro a curto e a longo prazo, mas tendo em conta o que está a acontecer com Itália e Espanha, Constantino Piçarra diz que não estranharia que surgisse uma proposta de “União Europeia dos países do sul”, que incluísse, para além daqueles dois, a Grécia e Portugal. 

 

Ou, então, que os quatro constituíssem um “lobby mais forte no quadro da UE”. Por fim, há o problema da união monetária, “com toda a gente a perceber que transfere dinheiro dos países do sul para os países do norte”. Conclui que este estado de coisas poderá espoletar “ideias de defesa da saída do euro e da União Europeia, com propostas que têm mais condições de terem adeptos e apoiantes após esta pandemia do que tinham antes, embora todas estão questões já estivessem presentes”. 

 

Sandra Saúde também receia que a tendência da Europa para a fragmentação e os desequilíbrios mundiais, “que podem favorecer os populismos e a xenofobia”, possam agravar-se ao longo deste período. A divisão da Europa entre o Norte e o Sul no contexto da União é por demais evidente, e se não houver consenso neste momento, “há sérios riscos de vir a fragmentar-se dentro de um a dois anos”, diz, concluindo que o cenário é duplamente preocupante porque a estabilidade mundial também depende do princípio da colaboração europeia. 

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