Diário do Alentejo

“É necessário que cantemos, a cantiga dá cor à utopia”

25 de novembro 2019 - 10:30

José Miguel Rego estudou no Conservatório Regional do Baixo Alentejo até ir para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde participou em iniciativas culturais, como músico e ator. Em 2017 forma o projeto musical Andrage que se prepara para lançar a sua primeira longa-metragem. Miguel Rego é arqueólogo. Desenvolveu, entre 2011 e 2017, o projeto Museu da Ruralidade, em Castro Verde. É autor de artigos e livros na área da história, do património e da poesia. A viver no Alentejo desde 1985, canta de forma pontual em alguns projetos desenvolvidos em Mértola e em Castro Verde, onde integrou o grupo coral Os Ganhões e o projeto Terra.

Texto José Serrano

José Rego e Miguel Rego, filho e pai, apresentaram, em Beja, o espetáculo “Poetas vestidos com música”. Uma revisitação e uma reinterpretação de canções originalmente musicadas por Zeca Afonso, Francisco Fanhais ou Pedro Barroso, à luz das palavras de ilustres escritores portugueses e espanhóis, como José Saramago, Eugénio de Andrade ou o andaluz Frederico Garcia Lorca.

É este espetáculo a união de dois olhares diferentes sobre uma mesma canção? São dois entendimentos distintos na forma de abordagem às canções, mas que se “conciliam” em cima do palco, sem que cada um de nós ceda no entendimento estético que tem sobre cada um dos poemas ou das músicas originais. E o que é mais interessante é que nem sempre o pai é o mais conservador e nem o filho é o mais arrojado… Quando o pai ouve, por exemplo, o “Porque”, de Sophia de Mello Breyner, musicado por Fanhais, ou o “Ouvindo Beethoven”, de José Saramago, musicado por Manuel Freire, há um lado histórico que pesa na interpretação que propõe e que o filho aceita, ou rejeita, em função daquilo que conhece, mas que, naturalmente, não sente da mesma forma, porque “não estava lá”. Essa subjetividade, assente no conhecimento que se vai adquirindo, pode refletir-se numa abordagem mais rica e mais contemporânea quando se interioriza a melodia e se dá corpo às possibilidades de representação que se podem desenvolver usando a voz e um instrumento.

A possibilidade de contemporizar músicas que são referenciais clássicos, será, estou em crer, um desafio e, simultaneamente, um risco… Arriscamos, seja através da voz, seja através da música. Se houver respeito pelo peso histórico, pela mensagem que se quer levar ao público, penso que será sempre um desafio ganho. A versão do “Menino do Bairro Negro” ou a dos “Vampiros” são bem o exemplo disso, dois dos temas em que soubemos, sem desrespeito pelo original, de José Afonso, trazer uma sonoridade nova, mantendo a melodia e não escamoteando o valor simbólico, político e cívico que enforma estes poemas.

Revisitam, neste espetáculo, um conjunto de músicos e escritores que lutaram através da sua arte, denunciando obscuros poderes. Considera que a canção continua a ser um poderoso aliado na propagação da palavra inconformada? A cantiga é uma arma! Mas para o ser verdadeiramente é necessária coragem e coerência. Assumir e perceber que é pela palavra que se tem de mudar. Contudo, os tempos de hoje não são de compromisso, mas os da banalidade, do supérfluo, da amizade fácil, do virtual. Do “pimbalismo” e da verborreia. Da ausência de compromisso e do não comprometimento por causas “difíceis”. Do politicamente correto. Para combater esta normalização, a canção precisa de estar aí, à mão de semear, para poder ser usada como bandeira.

É recomendável que cantemos mais? É necessário que cantemos, sempre! Porque a cantiga dá cor à utopia. Porque as palavras são o caminho mais direto e mais seguro para fazer do sonho o alimento.

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