Diário do Alentejo

Alojamentos para imigrantes são “guetos” com Internet

15 de novembro 2019 - 10:15
José Serrano/Arquivo

O regime especial e transitório, estabelecido pelo anterior governo, para permitir melhores condições de vida e habitação a trabalhadores agrícolas temporários e assegurar mão de obra no Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM), que abrange 12000 hectares nos concelhos de Odemira e Aljezur, “segue o caminho mais fácil, ao legalizar e premiar os responsáveis pelo desastre social e ambiental do AHM, oferecendo-lhes mais 10 anos de impunidade”. Quem o diz é Alberto Matos, dirigente da Solidariedade Imigrante (Solim), em declarações ao “Diário do Alentejo”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

O regime determina que os alojamentos temporários amovíveis na área do AHM para acolher trabalhadores agrícolas, desde que respeitem várias condições, “sejam equiparados a estruturas complementares à atividade agrícola pelo período de 10 anos não prorrogável”. Após o fim daquele período, deixarão de ser admitidos alojamentos nas áreas do AHM e, por isso, o regime incentiva “a busca de soluções que permitam a acomodação dos trabalhadores nos perímetros urbanos”.

 

A Solim já exigiu a revogação da resolução do Conselho de Ministros, que foi publicada no dia 24 de outubro, em “Diário da República”. Para Alberto Matos, “aglomerados de contentores que podem ‘alojar’ até 400 pessoas com 3,42 metros quadrados por cabeça, a uma distância mínima de 1000 metros dos aglomerados populacionais, são guetos ornamentados com promessas de instalação de Internet e ar condicionado”. E lembrando que o jornalista Miguel Sousa Tavares “coloca-os abaixo das roças de São Tomé e Príncipe”, diz que “a comparação com os campos de trabalho em África é inevitável: trabalhadores isolados, à mercê dos proprietários, das inúmeras empresas de trabalho temporário e ‘prestadores de serviços’ com práticas laborais que, nalguns casos, são classificadas pela ONU e pela OIT como trabalho escravo”.

 

Para o dirigente da Solim, a solução passa “por integrar todos os trabalhadores nos núcleos populacionais, não só os que ficam no interior do AHM, mas mais para o interior do concelho de Odemira e dos concelhos vizinhos que sofrem de despovoamento crónico”. Só assim, garante, “se respeita o direito a uma cidadania plena, ao reagrupamento familiar e se promove a integração de todos os aqui vivem, trabalham e criam riqueza”. E diz que “a integração” é uma “oportunidade para dinamizar os núcleos urbanos, nomeadamente, a habitação, o comércio e os serviços públicos”. A Escola Básica de São Teotónio, “onde cerca de metade dos alunos é de origem estrangeira, é reconhecida pela riqueza de experiências pedagógicas”, salienta.

 

Alberto Matos afirma ainda que “a implantação destas estruturas clandestinas”– a resolução aprovada pelo anterior governo fala de “cerca de 270 alojamentos precários nas explorações agrícolas situadas dentro do AHM” – “não resultou apenas da escassez de habitação”, mas “é opção deliberada das empresas para controlarem os trabalhadores e tê-los sempre disponíveis”. “A sua existência durante décadas, num parque natural, só foi possível pela ausência de fiscalização eficaz e pela conivência das autoridades com os poderosos interesses económicos instalados”.

 

Contactado pelo “Diário do Alentejo”, o presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreio, adiantou que está a preparar, com o seu homólogo de Aljezur, uma posição conjunta sobre a resolução do conselho de ministros.

 

Estado “permitiu a legalização da precariedade” Pedro Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, também em declarações ao “DA”, considera que “o Estado deve ser o garante do direito à habitação”, mas, neste caso, “permitiu a legalização da precariedade”. “Cada quarto/dormitório terá uma área de 13,70 metros quadrados, ou seja, apenas 3,43 metros quadrados por pessoa. Se a legislação portuguesa prevê que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, até que ponto esta resolução não coloca em causa isto mesmo? Nestas instalações, equiparadas a ‘estruturas complementares da atividade agrícola’, os trabalhadores migrantes conseguem construir o seu lar e a sua família?”, questiona, afirmando que “a falta de casas na região não pode justificar tudo”.

 

“Não estamos a falar de um contexto de emergência ou de conflito. Estamos perante, apenas e somente, uma necessidade de mão de obra para uma zona que não dispõe da capacidade necessária para acolher e bem trabalhadores. Outro ponto que deve ser sublinhado é a proibição do usufruto do espaço público, já que a instalação destas ‘unidades amovíveis de alojamento’, vulgo contentores, deve estar, pelo menos, a um quilómetro do perímetro urbano, o que nos parece completamente injustificado e desproporcional”.

 

No entender da Amnistia, os alojamentos “deveriam estar noutro sítio, numa localização que efetivamente fosse ao encontro das necessidades básicas relativas ao bem-estar destes trabalhadores”. Por outro lado, adianta o diretor-executivo, a solução apresentada significa “que, durante 10 anos, teremos pessoas a viver em contentores”. E conclui: “Não podemos permitir a precariedade continuada desta forma prevista, premeditada e tolerada pelas autoridades. A falta de dignidade e este modelo de vida fechado, longe das comunidades locais, onde se devem gerar dinâmicas sociais que valorizam a própria região, comprometem seriamente a realização dos direitos fundamentais destas pessoas”.

 

O “DA” tentou ainda obter um comentário junto do Claim – Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes de Odemira, resposta promovida pela Taipa, através de um Protocolo Multilateral de Colaboração, financiada por um consórcio público-privado, que inclui a câmara, uma associação de produtores agrícolas, empresas agrícolas e empresas de trabalho temporário.

 

A direção da Taipa refere que considera “que o Claim e a Taipa, o primeiro como uma resposta de intervenção na área do desenvolvimento comunitário, e a segunda como entidade executora e promotora, têm perante a realidade do território um papel de identificar e avaliar as necessidades locais no sentido de procurar respostas ao nível de intervenção social, contribuindo para a instrumentalização e concretização dessas respostas, captando para o efeito verbas de financiamento de fundos comunitários, públicos e privados”. Assim sendo, optaram por não responder às questões enviadas pelo “DA”. “Acreditamos que, se o fizéssemos, estaríamos a assumir um papel de comentadores políticos, o que não é de todo adequado do nosso ponto de vista e não estaríamos senão a emitir opiniões pessoais de cada um de nós, o que também não consideramos ético”.

 

O “DA” enviou, também, algumas questões ao Alto Comissariado para as Migrações, IP, mas não obteve qualquer resposta até ao fecho da presente edição.

 

“Não há alternativa” a alojar imigrantes A Associação de beneficiários do Mira (ABMira) avisou que “não há alternativa” ao alojamento de trabalhadores imigrantes em explorações do aproveitamento hidroagrícola devido à necessidade de mão de obra e à falta de “oferta suficiente de habitação”. Citado pela Lusa, o diretor executivo da ABMira, Manuel Amaro Figueira, diz que “o alojamento de trabalhadores imigrantes nas explorações sempre foi a situação normal no Alentejo, é favorável para as explorações e não há outra alternativa”. Segundo o responsável, “não há oferta suficiente de habitações” nos dois concelhos abrangidos pelo AHM, e, por isso, “a mão de obra que as explorações agrícolas necessitam obriga a que sejam tomadas medidas no sentido de permitir maior disponibilidade de trabalhadores imigrantes”.

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