Diário do Alentejo

Ser Pacense! - Beja impôs-se pelo seu posicionamento

12 de agosto 2019 - 16:30

Texto Jorge Feio, arqueólogo

 

Há algumas semanas atrás, um grande amigo abordou-me dizendo: "Um colega teu (arqueólogo) que tem um estabelecimento aqui em Beja, disse-me que nós não sabíamos qual a verdadeira importância que Beja teve no passado. informou-me que Beja tinha um templo tão grande como o de Évora e que a cidade era quase tão importante como a outra." Confesso, que precisei de uns segundos para controlar a enorme vontade que tive de me rir desalmadamente, não sei ainda se de alegria se de tristeza. De alegria, porque alguém que tem investido tudo o que tem em Beja, o meu amigo; de tristeza, porque um arqueólogo que está em Beja não sabe a real importância da cidade e do que representa ser Pacense. Com calma expliquei então ao meu querido compatriota alvitense, agora quase pacense, que o templo de Évora tinha dois terços do templo romano de Beja (pelo que templo de Beja era maior) e que as próprias dimensões do fórum de Beja eram muito superiores às do fórum de Évora. Acrescentei ainda que a área muralhada (tardia) de Évora era de 6ha e que a de Beja era de 23ha, sendo que esta última cidade terá sido das poucas do nosso território que não viu a sua área reduzida a partir do século III, o que demonstra a pujança de Pax Iulia. Respondeu-me o meu amigo de imediato: "Então, na época romana a cidade de Évora era uma espécie de bairro de Beja?". Eu sorri e disse-lhe que sim.

Este pequeno diálogo que estabelecemos é demonstrativo do muito que temos para fazer em Beja. A cidade precisa urgentemente que os seus "filhos" conheçam a sua história, que a respeitem e que tenham orgulho dela, por tudo o que a própria cidade tem representado para a própria história de Portugal. Repare o meu digno leitor que eu não escrevi "Ser Bejense". Escrevi "Ser Pacense"! E com muito orgulho. Perguntar-me-á: Porquê? Porque Pax Iulia foi o nome desta cidade, que foi colónia mista. Para aqui vieram colonos como a tal Maria Prisca que abordei na primeira crónica que escrevi, que se misturaram com os antigos habitantes de uma cidade muito importante que já existia na Idade do Ferro (seria a - quase - mítica Conistorgis?). A esta cidade ofereceu Cesar Augusto (esse mesmo, o primeiro imperador romano, sobrinho-neto de Júlio César) as portas da cidade, entre os anos de 4 e 2 a.C.. A cidade era grande, para os nossos padrões e cosmopolita. Em Pax Iulia se instalaram pessoas oriundas das mais variadas partes do império. Aqui viveram cidadãos vindos de Roma, de Olisipo (Lisboa), temos notícia de um sodalicium dos Brácaros (naturais de Bracara Augusta, actual cidade de Braga) que construíram e expensas suas um edifício com uma cratera.

A cidade impôs-se pelo seu posicionamento central, próximo de minas importantes e rodeada dos melhores solos agrícolas da Lusitânia, província de que era uma das principais cidades, tendo atingido tal importância que foi a capital do conuentus Pacensis, região administrativa que abarcava, grosso modo, todo o território situado a sul d rio Tejo e da Serra da Arrábida. Consegue imaginar o caro leitor? A cidade de Beja era a capital de um território onde se localizavam cidades como Setúbal, Évora, Faro, Tavira, Albufeira, Portimão (entre outras que na altura eram muito importantes, como Mértola e Alcácer do Sal).

 

Nas centúrias seguintes Beja manteve a sua importância. No século VI, o seu nome derivou para Pace (não, não era Paca). Pace é a forma oral como em latim se lê Pax. Ou seja, passou a escrever-se o seu nome da forma como se pronunciava, algo que corresponde a uma evolução normal. neste período a cidade continuou a ser muito importante. Tinha muitas igrejas e teve bispos extrordinariamente bem conhecidos no "mundo mediterrânico", como aquele que se diz ter sido o primeiro (mas que eu não acredito) Apringio, um forasteiro que veio para a cidade e que aqui escreveu um brilhante comentário ao Apocalipse, cuja leitura era obrigatória em todas as igrejas hispânicas.

 

Sob o domínio islâmico, Pace passa a denominar-se Baja, que evoluiu para Baju e Beja. Perguntar-me-á o leitor: "E não será mais sensato chamar-se aos naturais de Beja Bejenses? Afinal de contas, a cidade chama-se Beja." Talvez seja, mas Baja é a tradução literal de Pax. Ou seja, Pax/Pace (=Paz) significa exactamente o mesmo do que Baja/Baju (=Paz). Então, se significam exactamente o mesmo, Paz, prefiro considerar-me Pacense!

 

Neste período, Beja manteve o seu estatuto, pelo menos até ao século X. Os geógrafos árabes deixaram-nos imensas informações importantes sobre a cidade: tinha muitas mesquitas, terrenos férteis, rica em mel e couros e famosa pelos seus poetas, como o rei-poeta Al-Mutamid. Era uma cidade de tal forma grande, que mesmo depois de muito desvastada pela guerra, fosse ela entre as taifas de Sevilha (onde estava integrada) e de Badajoz (onde estava Évora), fosse no processo da conquista portuguesa, as ocupações adversárias duravam muito pouco tempo. Várias vezes foi conquistada pelas tropas portuguesas e várias vezes foi abandonada até 1232. Por muito que quisessem ficar na posse da cidade, os portugueses sabiam que não tinham capacidade militar para a manter em sua posse. E aqui se iniciou o declínio de Beja, em prol do crescimento de Évora. Porquê? Porque Évora retomou a sua diocese, enquanto que a diocese Pacense passou para a cidade de Badajoz, entretanto conquistada, pois era necessário colocar um bispo nessa cidade extremamente importante criada por Ibn Marwan no século IX e que nunca tinha sido sede de diocese. Encontrando-se a de Beja vacante, por não ter sido conquistada, passou para Badajoz.

 

Sabendo-se quão importantes foram as acções políticas dos bispos na afirmação das cidades durante a Idade Média, mais facilmente poderemos perceber quanto perdeu a cidade de Beja por ter ficado sob a alçada de Évora até ao final do século XVIII, altura em que Frei Manuel do Cenáculo foi bispo de Beja.

 

O texto que aqui apresento serve, de forma muito sumária, para dar a conhecer aspectos importantes da história da cidade de Beja. Através dele, pretendo chamar a atenção para alguns aspectos/problemas que têm de ser resolvidos com muita urgência, se queremos que a cidade cresça na sua dignidade. Por exemplo, a Câmara Municipal de Beja não tem um único arqueólogo nos seus quadros. E não precisa apenas de 1 arqueólogo. Precisa de um gabinete a sério com vários arqueólogos, que possam servir a cidade com os seus conhecimentos, dirigindo intervenções arqueológicas, estudando em permanência Beja e o seu território e divulgando os dados junto da comunidade local e da comunidade científica. A cidade não pode continuar dependente de lutas fratricidas por projectos, pelo contrário deve ter um projecto de desenvolvimento sustentado a partir do património como um dos pilares de desenvolvimento, semelhante a casos que podemos ver em cidades como Mérida e Léon, em Espanha, ou em vilas como Mértola, em Portugal. E note-se que escrevi "um dos pilares de desenvolvimento", que deve ser sustentado em paralelo com a agricultura, com a indústria, entre outros.

 

Mas eu não sou agricultor, ou proprietário industrial, pelo que escrevo sobre o que sei. E, neste sentido, gostaria de ver as história de Beja a ser ensinada nas escolas do concelho (do 1º ao 12º ano). Gostaria também de ver criados roteiros turísticos com base no património, alguns deles intermunicipais, ligando aos concelhos límitrofes. Talvez seja também importante rever a questão de Pisões. Uma uilla romana espectacular, com acessos deploráveis, onde não podem aceder autocarros. E porque não escavar outras uillae romanas nos arredores de Beja. O nosso património tem de estar, todo ele, acessível ao público.

 

Como é que se justifica que Beja tenha menos turistas do que Mértola? Portanto, ainda há muito para se fazer nesta cidade. Temos de fazer com que os cidadãos de Beja conheçam a sua história, tenham orgulho em ser Pacenses e em proteger e divulgar o que é seu por herança e só assim poderemos pensar em acordar esse "monstro sagrado adormecido" em que Beja se transformou. Está nas nossas mãos fazê-lo... urgentemente. Por isso dedico este texto à memória do meu amigo Leonel Borrela. Ele que não sendo natural de Beja, sentia orgulho em ser Pacense e tanto fez para divulgar a história da cidade contra todas as correntes que tanto o maltrataram.

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