Diário do Alentejo

Arqueologia: Encontraste prata? Então toma atenção!

31 de março 2021 - 17:30

José d’Encarnação, arqueólogo

 

Têm os arqueólogos especial predileção pelas lixeiras.

 

A sério?

 

Sim, porque para a lixeira se vai deitando tudo aquilo que já não serve, que se partiu e não há meio de arranjar ou a gente já não está para aí virada... E, como de cacos partidos e quejandos se pode reconstituir o recipiente inteiro, a lixeira é uma mina de informações!

 

A propósito de minas, diga-se que foi precisamente no meio das escórias – ou seja, do lixo deitado fora pelos romanos quando, há dois mil anos, exploraram as minas de Aljustrel – que se encontraram dois dos mais preciosos documentos que temos, a nível mundial, para estudar a legislação mineira desse tempo.

 

Trata-se de duas placas de ‘bronze’ com inscrições gravadas: as chamadas vulgarmente “Tábuas de Bronze de Aljustrel”.

 

Foi a primeira – que está no Museu Geológico, em Lisboa – achada no ano de 1876, entre as escórias de minério de cobre provenientes da mina de Algares, uma das que foram então exploradas. Designa-se habitualmente por Vipasca I [Vipasca foi o nome dado pelos romanos à localidade]. Expõe-se a segunda (Vipasca II) no Museu Nacional de Arqueologia; foi encontrada em 1906, igualmente no meio das escórias.

 

Então, sendo leis – perguntar-se-á – não deveriam ter sido postas em lugar de relevo? Como é que foram para o lixo? Há, de facto, em Vipasca I, dois orifícios que documentam ter sido a placa destinada a ser afixada em lugar público, para que todos a vissem.

 

A ida para o lixo justifica-se por serem leis que iam sofrendo alterações segundo as novas circunstâncias que ocorriam; e, assim, havendo outra lei, se não podia emendar-se a anterior, esta deitava-se fora e outra se fazia. Aliás, verificou-se, decerto, que se indicou ‘bronze’ – entre vírgulas altas – o material em que essas duas placas foram feitas, porque é opinião dos investigadores que era localmente que esses documentos se faziam, em material não muito caro, até porque essas disposições legais se adaptavam às circunstâncias do local, independente de haver, de facto, uma legislação geral emanada do imperador.

 

De que tratam essas leis? Dir-se-á, em primeiro lugar, que ambas as placas fazem parte, cada uma, de um documento maior, de que nos faltam as outras ‘peças’, desconhecemos quantas – duas ou três mais.

 

Regula Vipasca I a vida quotidiana. Como assim? Não, já percebo a razão da pergunta. Não: os romanos de Vipasca não estavam agrilhoados por ditames rigorosos para o seu dia-a-dia, como nós, hoje (felizmente!) ainda temos alguma liberdade de ação! O que se passava é que determinadas atividades eram concessionadas, como o são na atualidade, por exemplo, os transportes públicos e também o comércio e a atividade industrial estão sujeitas a regras.

 

Vipasca I indica as regras a que devem obedecer: a concessão da exploração dos vários poços; a adjudicação dos leilões; a exploração do balneário; o exercício dos ofícios de sapateiro, do barbeiro, do pisoeiro, dos negociantes de escórias…

 

Já Vipasca II detém um caráter mais técnico e financeiro, digamos assim, uma vez que, além de estabelecer regras práticas para a exploração dos filões, de modo a salvaguardar sempre a segurança, indica claramente os impostos a pagar ao fisco. Anote-se, a título de curiosidade, que já havia quem, indevidamente, se apossasse de um poço; nesse caso, era natural que pudesse ficar com ele, embora fosse obrigado a declarar, dentro de dois dias, o que fizera e se disponibilizasse a pagar o que se estabelecesse.

 

O CASO DO BALNEÁRIO

 

Balneário é palavra que, na atualidade, diariamente se ouve em contexto desportivo. Mesmo os mais leigos na matéria têm uma ideia clara de que o “balneário” – antes, durante e após um jogo… – funciona envolvido num certo misticismo, realmente importante. E não é que os balneários já no tempo dos romanos estavam imbuídos desse véu muito especial?

As casas mais importantes tinham as suas próprias termas, como as cidades as tinham também. Banhos quentes, banhos frios, banhos tépidos e… o lugar para a conversa, pois nem sempre os utentes estavam dentro das piscinas!

 

O confinamento a que a pandemia nos obrigou fez-nos avaliar melhor o valor desse convívio – que os romanos já deveras apreciavam, porque, na realidade, muitos dos negócios aí se ajeitavam. Dir-se-ia que o ‘otium’ – o lazer – estava de mãos dadas com o ‘negotium’ – o não ócio, a gestão.

 

Não terá sido, consequentemente, por acaso que, na ‘villa’ romana de S. Vitória do Ameixial (Estremoz), o senhor mandou gravar no mosaico que dava para uma das piscinas das suas termas privadas a seguinte frase que mostra bem a importância que ele dava à arte de bem receber: “Felicião, escaldado, é pior do que um carroceiro”. E a imagem que a frase legendava mostrava-o a fustigar com um ramo a escrava desnudada que não soubera manter a água à temperatura adequada!

 

No caso de Vipasca, o concessionário do balneário era obrigado a mantê-lo aquecido, “totalmente a expensas suas, diariamente” até ao primeiro dia de julho; a água devia correr abundantemente e, caso o procurador das minas verificasse que o balneário não estava em condições, o concessionário seria multado.

 

SE ENCONTRARES PRATA

 

Como é sabido, as minas de Aljustrel situam-se na denominada faixa piritosa do sudoeste ibérico, que se estende desde a província espanhola da Andaluzia até ao Oceano Atlântico. Ora, as pirites não eram apenas minérios de ferro, pois que tinham, por vezes, a elas associado bom teor de prata e mesmo de ouro, o que constituía, portanto, um rendimento extra, deveras cobiçado.

 

Não admira, por isso, que o legislador, assim como quem não quer a coisa, haja estipulado: “Aquele que abrir poços de prata a partir do canal subterrâneo destinado ao escoamento de águas das minas, prosseguirá a exploração de forma a afastar-se e a deixar de cada lado um espaço inexplorado de, pelo menos, sessenta pés; e manterá as escavações nos limites legais”.

 

Isto é, trocando a frase por miúdos: caso se deparasse com um filão rico em prata, a tentação seria de o explorar o mais possível, pondo inclusive em risco a segurança de todos; daí a prescrição: “Encontraste um filão de prata? Então, não te esqueças das regras e… não sejas lambão, que há valores mais altos a respeitar”.

 

Aljustrel, a Vipasca dos romanos, um sítio ímpar, portanto, mesmo a nível mundial. No Museu Nacional de Arqueologia se guardam também alguns dos objetos de há dois mil anos que se lograram recuperar: por exemplo, uma roldana de madeira de azinho, de cinco centímetros (cm) de espessura e 22,4 de diâmetro; e um martelo mineiro de dolerito, com 18,8 cm de comprimento e 10,4 de largura, que tem, ao centro, o sulco transversal, picotado, para facilitar o encabamento.

 

Enfim, curiosos testemunhos de um passado que nunca é de mais recordar!

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