Diário do Alentejo

Francisco Miguel, o sapateiro de Baleizão, preso 21 anos pela PIDE

09 de março 2021 - 10:00

Reservado e de “uma grande sensibilidade”, Francisco Miguel foi, é, um símbolo de luta contra a ditadura do Estado Novo. Nascido em Baleizão “no seio de uma família de camponeses pobres”, e tendo crescido no concelho de Serpa, onde se fez sapateiro, em 1932 entrou para o Partido Comunista Português, integrando o Comité Local de Lisboa. Foi preso cinco vezes, evadiu-se quatro. Na véspera da celebração dos 100 anos da fundação do PCP, recordamos a história do resistente antifascista que passou mais tempo nas prisões da PIDE: 21 anos.

 

Texto Júlia Serrão

 

Num artigo de “O Militante”, publicação do Partido Comunista Português, Fernando Correia refere-se a Francisco Miguel como o “combatente e dirigente do partido que, pela sua luta contínua e infatigável de décadas, pela sua vida de sacrifícios e de privações mas também de entusiasmo combatente em prol da liberdade, da justiça social e de um futuro socialista para os portugueses e para Portugal, merece figurar na lista dos mais heroicos lutadores do PCP contra o fascismo pela conquista e consolidação da democracia”.

 

Parte, depois, para uma explanação sobre Francisco Miguel, que se cruza com a biografia que Helena Pato faz do homem que ambos descrevem como “franzino, discreto, pouco expansivo e de uma grande sensibilidade”, um homem que, asseguram, era “amado por todos” os militantes comunistas. Diz-se que também era tímido, e “com alma de poeta, com obra publicada”, como acrescenta Fernando Correia, na narrativa escrita por altura dos cem anos sobre o nascimento do militante baixo-alentejano.

 

Francisco Miguel Duarte nasceu na primeira década do século XX, a 18 de dezembro de 1907, em Baleizão, freguesia do concelho de Beja. Os pais, camponeses pobres, mudam-se sete anos depois do nascimento do filho para a herdade da Casa de Ficalho, em Vale de Zorras, onde arranjam trabalho. A distância de cinco quilómetro entre o lugar de residência e a escola mais perto, em Serpa, impede a criança de frequentar o ensino primário, restando-lhe ajudar os pais nos trabalhos no campo, nos anos que se seguiram. Situação que, no entanto, não determinaria o seu futuro profissional, já que, aos 13 anos, faz-se aprendiz de sapateiro na então vila de Serpa.

 

Desde logo começa a dar que falar pois, como comenta Helena Pato, “ainda adolescente já é um ativo animador das iniciativas de duas associações profissionais: a dos sapateiros” – é eleito para os seus corpos gerentes, segundo Fernando Correia –, “e uma outra, de trabalhadores rurais”. É por esta altura, e durante uma assembleia destes últimos, que em 1930 discursa em público pela primeira vez. “Aos poucos, o jovem sapateiro vai ganhando protagonismo junto dos trabalhadores de Serpa”, pode ler-se num artigo do “Avante”, órgão oficial do PCP. No ano seguinte, no meio de uma concentração de várias centenas de trabalhadores rurais em frente aos Paços do Concelho da vila, que reclamam “pão e trabalho”, Francisco Miguel “sobe para um banco”, comentando a “situação dos camponeses e a falta de soluções por parte da autoridade”, espoletando a perseguição de que seria continuamente alvo a partir desse dia. A Guarda Nacional Republicana (GNR) tenta capturá-lo, mas o jovem consegue escapar protegido pela multidão, vindo a refugiar-se em Espanha.

 

MILITÂNCIA E SUCESSIVAS PRISÕES

 

Em Rosal de la Frontera, Francisco Miguel vive da sua profissão de sapateiro. “Ali conheceu exilados portugueses e oposicionistas espanhóis, sobretudo ligados ao Partido Comunista de Espanha, fundamentais para a sua formação política e ideológica”, refere o mesmo artigo. Com este sistema de ideias e valores que lhe definem uma nova visão do mundo, e menos de um ano depois de ter fugido, o “sapateiro de Baleizão”, como havia de ficar conhecido, regressa ao país para se fixar em Lisboa. Na capital, exerce o seu ofício e faz-se sócio do Sindicato dos Sapateiros.

 

A entrada no PCP acontece em 1932. Integra o Comité Local de Lisboa, o que lhe permite conhecer e relacionar-se com outros militantes e dirigentes comunistas. Diz-se que Manuel Rodrigues da Silva o terá marcado profunda e especialmente. Aqui, começará também “a controlar algumas células” do PCP.

 

Com vista a estudar na Escola Leninista, é enviado em 1935 para Moscovo, onde conhece altos dirigentes do partido, entre eles Álvaro Cunhal, com quem “aproveitou para enriquecer a sua formação teórica”. Dois anos mais tarde está de novo em Portugal “para mergulhar na clandestinidade”. Pouco depois integraria o Comité Central e, posteriormente, o seu Secretariado.

 

É preso a primeira vez no ano seguinte, e espancado barbaramente, mas não cede perante a polícia. Num dos painéis da exposição organizada pelo “Avante”, no âmbito do centenário do nascimento de Francisco Miguel, pode ler-se que “negou qualquer declaração aos pides, nem sequer para dizer o nome”. Também Helena Pato refere o facto, já a propósito de outras capturas: “Francisco Miguel, usando da experiência que colhera nas cadeias fascistas, toma uma decisão, nem histórias grandes nem pequenas, nem frases curtas ou compridas. Face aos interrogatórios, silêncio absoluto. Na polícia não se prestam declarações”.

 

A 19 de março de 1939 foge do forte de Caxias, onde estava preso. A partir daqui a sua vida vai-se desenrolar em contínuas prisões e evasões, até somar 21 anos de cárcere, o que o tornam no militante antifascista que mais tempo esteve preso pela PIDE.

 

Foto | Eurico Reis (Arquivo)Foto | Eurico Reis (Arquivo)

De regresso ao trabalho, após a evasão de Caxias, e integrando o Comité Central e depois o Secretariado do PCP, com Álvaro Cunhal e Ludgero Pinto Basto, fica responsável por reativar a publicação do “Avante”, mas acaba de novo preso. Julgado e condenado, foi deportado para o Tarrafal em junho de 1940, de onde regressa seis anos depois, ao abrigo de uma amnistia. Depois do IV Congresso do PCP, em agosto desse ano, Francisco Miguel vai ficar com a tarefa de, juntamente com Pires Jorge, dirigir a atividade do partido no Alentejo.

 

O ÚLTIMO PRESO DO TARRAFAL

 

Em 1947, Francisco Miguel é mais uma vez preso. “De novo brutalmente torturado – a tortura do sono e a ‘estátua’ – e, após ter sido deixado em rigorosa incomunicabilidade, é levado para Peniche”, regista Helena Pato. Em 1950, volta a evadir-se mas não chega a sair de Peniche. Apanhado pela GNR, é enviado para o Tarrafal. Quando em 1953, Salazar encerra o campo de concentração, coagido por uma campanha internacional, os presos são sucessivamente transferidos para Portugal continental. Vai restar Francisco Miguel que, durante seis meses, fica só com os carcereiros na cadeia da ilha de Santiago, em Cabo Verde. A 26 de janeiro de 1954 volta à prisão de Peniche, onde permanecerá seis anos, fazendo parte do grupo de dez destacados dirigentes do PCP que se evade da prisão. Entre eles está Álvaro Cunhal.

 

De acordo com a biografia escrita por Helena Pato, Francisco Miguel “não chega a desenvolver grande trabalho no partido, nem sentir a vida fora dos muros da prisão durante muito tempo”. Detido em Elvas, é levado em julho do mesmo ano para Caxias. Foge de novo, agora pela quarta vez, a 4 de dezembro de 1961, “no grupo de sete militantes que se evadem no carro blindado que pertencia a Salazar”. Regressa à clandestinidade, até ao 25 de abril de 1974. “Reintegrado na atividade política do partido, participa, em 1965, no VI Congresso, onde é mais uma vez eleito para o Comité Central”, refere Fernando Correia.

 

No princípio dos anos 70, Francisco Miguel tem 63 anos e integra a Ação Revolucionária Armada (ARA), o denominado “braço armado” do PCP, “tendo participado no planeamento e execução de operações de sabotagem do aparelho militar colonial e de propaganda do fascismo”, segundo escreve o “Avante”. Helena Pato explica o acontecimento: “Já com Jaime Serra no comando central da ARA, após preparação específica para a ação, Francisco Miguel iria juntar-se, em outubro de 1970, aos militantes operacionais destacados para a colocação de um engenho explosivo no navio Cunene que se preparava para transportar armamento para a guerra colonial”.

 

Quando se dá o 25 de Abril de 1974, “Chico Sapateiro”, a alcunha por que era conhecido entre camaradas e amigos, tem 67 anos (21 passados nas prisões da PIDE), e vai ser eleito deputado à Assembleia Constituinte, em 1975, e à Assembleia da República, entre 1976 e 1985, como deputado por Beja. Morreu aos 81 anos, a 21 de maio de 1988, no Seixal, num convívio com militantes e simpatizantes do PCP.

 

O LADO POÉTICO

 

Conquistada a liberdade, Francisco Miguel vai prosseguir a sua “atividade militante, na luta pela defesa e aprofundamento da democracia, participando em dezenas de comícios e sessões de esclarecimento por todo o país e, particularmente, no seu Alentejo”, segundo fonte partidária. Juntamente com outros democratas, vai empenhar-se na fundação da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), tendo um papel decisivo na iniciativa que trouxe de regresso a Portugal os restos mortais de 32 presos assassinados no “campo da morte lenta”, o Tarrafal, e enterrados em Cabo Verde. Em abril de 1980 foi condecorado pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade.

 

A par da sua faceta “guerreira” e “resiliente”, havia em Francisco Miguel um lado sensível, de escritor e poeta, que levava às suas obras a vida do povo e a revolução. Eventualmente em jeito de catarse, já que dizia não se considerar nem uma coisa nem outra. Seja como for, assinou vários livros em prosa, entre eles “Das prisões à Liberdade” (1986). Na poesia, destacam-se os títulos “Rosas Antigas” (1980), e “Poesias” (1986), livro editado clandestinamente em setembro de 1960 com a finalidade angariar fundos para “as vítimas da repressão fascista”. Seria roi reeditado em 2005, já depois da sua morte, pela Cooperativa Cultural Alentejana.

 

No dia 18 de dezembro de 2007, o PCP assinalou os 100 anos de nascimento do seu militante na Biblioteca Municipal José Saramago, em Beja, numa sessão evocativa com inauguração de uma exposição sobre a vida e a obra de Francisco Miguel. Na mesma altura, a Câmara de Beja também lhe prestava homenagem, dando o seu nome à antiga Rua 1.º de maio, que assim passou a chamar-se rua Francisco Miguel. Um “gesto simbólico para lembrar, com saudade, um grande lutador contra a ditadura e um dos grandes operários da democracia em Portugal”, explicaria na altura Francisco Santos, o então presidente da autarquia.

 

“UM COMBATENTE DE PROFUNDAS CONVICÇÕES”

 

Dirigente histórico do PCP e conselheiro de Estado, Domingos Abrantes diz que Francisco Miguel ocupa no imaginário dos comunistas “um papel extraordinário”. Desde logo, refere, “por ser um combatente de longa data e de muitíssimas e profundas convicções. Um camarada que foi submetido às mais bárbaras torturas, que teve muitos e muitos anos de prisão – esteve no Tarrafal, aliás foi o último preso a sair do campo de concentração –, e sempre enfrentou as dificuldades, as agruras da vida, as mais bárbaras torturas com uma enorme confiança nos ideais que abraçou desde muito novo. Era de uma combatividade extraordinária face aos inimigos, nomeadamente à polícia”. Em declarações ao “Diário do Alentejo”, Domingos Abrantes sublinha que Francisco Miguel “tinha uma convivência própria de um revolucionário, como ele era, na grande solicitude para com as pessoas, um amigo dos amigos”. Os dois viveram não só a cadeia, pois estiveram presos juntos, mas partilharam igualmente a fuga de Caxias, que faz este ano 60 anos e que constitui um momento histórico na vida do partido. “Depois, teve a felicidade de ver o 25 de Abril. Muitos antifascistas, muitos comunistas que lutaram pela liberdade não tiveram a sorte e a felicidade de ver esse enorme acontecimento em que ele se empenhou ardentemente, na construção do Estado democrático, na luta pela Reforma Agrária. Foi deputado, e na Assembleia defendeu nomeadamente a realização da Reforma Agrária, tendo a conceção que ela era indispensável ao progresso do país e ao bem-estar dos alentejanos”, acrescenta. Domingos Abrantes refere-se a Francisco Miguel como um “camarada que, até ao fim da vida, manteve o espírito de sempre, a fidelidade ao seu partido, sempre com uma enorme confiança na construção dos ideais que abraçou. Penso que esse é o seu traço mais marcante”.

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