Diário do Alentejo

Mértola: Preservação do património arqueológico

10 de janeiro 2021 - 13:10

Texto Jorge Feio (arqueólogo)

 

Nos últimos tempos têm vindo a lume informações muito tristes sobre destruição de património arqueológico no Alentejo, através de trabalhos agrícolas, sobretudo nos concelhos de Beja, Évora, Mora e Serpa. Poderemos acrescentar ainda a destruição de umas importantes termas romanas em Alvito quando escavaram umas valas para colocação de esgotos na via pública, para a qual seria necessária a autorização do município (a mesma entidade que em 2011 pagou as escavações arqueológicas que a minha amiga e colega Lina Maltez ali realizou). Da mesma forma, contam-se aos casos de abandono e degradação do património arqueológico e edificado em todo o país.

 

Perguntar-me-á o caro leitor (ou a cara leitora): “Será possível proteger e conservar todo o nosso património? Que vantagens teremos em fazê-lo? Não estaremos a esbanjar dinheiro?”. Respondo que, não sendo possível conservar tudo, devemos esforçar-nos por manter e recuperar o máximo possível, porque o nosso património histórico, arqueológico e artístico é aquilo que nos define como povo e nos distingue dos outros povos.

 

Além disso, não estaremos a esbanjar dinheiro. Pelo contrário, estaremos a investir, na medida em que a investigação científica nesta área poderá ajudar a consolidar redes turísticas com a consequente criação de postos de trabalho (diretos e indiretos) e de riqueza, que tão necessários são, sobretudo a zonas situadas no interior do país. Uma 'villa' romana como São Cucufate, por exemplo, a mais bem conservada de toda a Península Ibérica, tem todas as condições para receber umas largas dezenas de milhares de visitantes. O valor dos ingressos pagos poderia servir depois para aplicar na conservação do monumento e na recuperação de outros localizados na sua zona de implantação. Certamente, os habitantes e naturais do concelho da Vidigueira não teriam de pagar bilhete e teriam muito a ganhar com a criação de postos de trabalho.

 

O caso que aqui apresento hoje situa-se em pleno centro histórico de Mértola e resulta de duas intervenções arqueológicas, realizadas com o distanciamento de 13 anos, que acabaram por se tornar num exemplo da prática a ser seguida pelos municípios (e também pelos grandes investidores) no que concerne àquilo que verdadeiramente poderemos considerar um trabalho arqueológico preventivo. Trata-se do edifício conhecido como “Casa da Fagulha”, que no decorrer dos anos foi dividido em várias áreas de habitação, daí que os trabalhos realizados entre 2006 e 2008 se tenham designado “Casa da Fagulha” e os trabalhos realizados entre 2019 e 2020 sejam denominados “Casa da Fagulha 2”.

 

Em 2006, a Câmara de Mértola promoveu a execução de uma obra na “Casa Fagulha”, com projeto da responsabilidade do Gabinete Técnico Local (GTL), cujo objetivo passava por um processo de recuperação arquitetónica e estrutural de um edifício degradado para realojar famílias carenciadas residentes no centro histórico. Na altura, sendo eu o arqueólogo do GTL, foi-me indicado que seria necessária, ainda antes da conclusão do projeto, a escavação de valas junto das paredes e a colocação de drenos para tentar retirar a humidade das paredes, as quais necessitariam de acompanhamento arqueológico, aproveitando-se ainda para proceder a um rebaixamento do pavimento dos compartimentos situados nas traseiras da casa.

 

Esta ação justificava-se não só por a intervenção se localizar em pleno centro histórico de Mértola, mas também porque na zona envolvente se vinham descobrindo, desde o século XVI, importantes vestígios da época romana, cujo conjunto não tinha ainda sido bem estudado. Destacamos neste caso a estatuária, com especial destaque para os togados e sacerdotisa descobertos aquando da abertura das fundações para a construção da Igreja da Misericórdia, o togado descoberto na “Casa Cor-de-Rosa, a cabeça de Augusto, a cabeça de Dyosisos (Baco) menino e ainda a cabeça de Tyche (Fortuna)/Cibele. Um dos maiores conjuntos de época romana descobertos até 2006 data no atual território português. Merece ainda destaque uma inscrição votiva identificada na Torre do Rio, publicada no "Ficheiro Epigráfico" com o número 1, dedicada à “Deusa Santa”, que era tutora da cidade.

 

Nos anos 80 do século passado foi escavada a casa romana que se encontra musealizada na cave do edifício da Câmara Municipal e que tinha continuidade sob a atual sede do Parque Natural do Vale do Guadiana. O desenvolvimento desta intervenção permitiu identificar um arruamento de época moderna, um silo islâmico e um importante conjunto de estruturas monumentais de época romana que obrigaram à realização de sondagens arqueológicas para uma melhor compreensão do tipo de ocupação do lugar, das suas posteriores transformações e do seu estado de conservação.

 

A conjugação espacial e cronológica de todas as estruturas de época romana identificadas nesta intervenção com as esculturas e o pedestal com inscrição votiva encontrados na sua envolvente, e ainda as dimensões e qualidade do aparelho construtivo das mesmas, permitiram supor que estaríamos, muito possivelmente, perante um edifício público romano, tendo alguns colegas que visitaram o local aventado a hipótese de se tratar do fórum da antiga Myrtilis. Os materiais permitiram-nos propor uma cronologia para a sua construção situada algures no último quartel do século I a.C., sendo contemporâneo da atribuição do 'Latium Veteris' por Augusto antes do ano 12 a.C. e da elevação da cidade à categoria de 'municipium' entre aquela data e o ano de 37. Neste caso, destaca-se o facto de, tratando-se de um edifício público, demonstrar que a monumentalização de Myrtilis poderá ser contemporânea do que ocorreu em Augusta Emérita, em que o teatro e o anfiteatro foram construídos em 8 a.C., e em Pax Iulia, cujas portas foram oferecidas pelo imperador Augusto entre 4 e 2 a.C..

 

Pese embora a área intervencionada seja de reduzidas dimensões, os dados obtidos permitem supor que se trataria de uma construção com dimensões consideráveis. Podendo pensar-se que em época romana existiria ali uma boa plataforma, onde poderiam facilmente ser construídos edifícios com dimensões consideráveis. Entre as estruturas então identificadas, destaca-se um possível 'podium' de um templo, sobre o qual ainda se podia observar o que restava da parede da cela, construído de forma apoiada num socalco.

 

Este socalco era enquadrado por uma parede de suporte com 1.18 metros de largura, cujo aparelho era constituído por lajes de xisto de pequenas, médias e grandes dimensões, fortemente ligadas com argamassa de cal. O possível 'podium' e a cela servem ainda hoje de suporte à parede norte desta parte da casa de dois pisos. Estas estruturas têm associados pavimentos em 'opus caementitium'. Num dos compartimentos foi possível observar que uma parte do muro de suporte foi desmantelada até à base ainda antes do século V, em fase anterior a um conjunto de grandes cheias que assolaram a cidade ao longo de toda a Antiguidade Tardia e Alta Idade Média, pelo menos, até ao século XII, aqui registadas pela primeira vez em intervenções arqueológicas realizadas em Mértola.

 

Talvez se possa associar este desmantelamento a uma forte reestruturação urbana, que possa ter passado pelo desmantelamento do possível fórum portuário e a construção de novas estruturas monumentais, como a “Torre do Rio” ou todo o complexo religioso que o Campo Arqueológico de Mértola tem vindo a colocar a descoberto na acrópole, onde se situa o castelo de Mértola. Este facto não é de estranhar, compreendendo-se mais facilmente a origem do friso do templo, da inscrição votiva e dos vários elementos arquitetónicos observados na “Torre do Rio”.

 

A presença de um silo islâmico, de uma rua e paredes de uma casa datáveis de época moderna deixavam antever novas fases de reestruturação urbana desta zona da vila de Mértola que só poderiam ser perfeitamente compreendidas em novas intervenções que viessem a realizar-se posteriormente nas casas contíguas, ou na rua.

 

Na época, a hipótese de localização naquele local de um fórum ligado à atividade comercial, apesar de suportada pela opinião de alguns colegas, foi ridicularizada por outros e a Câmara de Mértola optou por tapar as sondagens e continuar a obra sem danificar as estruturas arqueológicas identificadas e deixando à vista, no logradouro, parte dos possíveis 'podium' e cela. Caso tivesse tido mais algum apoio por parte de alguns investigadores no trabalho que estava a realizar, talvez o município tivesse optado por continuar a intervenção em algumas zonas da casa que não foram escavadas, musealizando-se depois o espaço.

 

NOVA INTERVENÇÃO

 

Passados alguns anos, a Câmara de Mértola pretendeu avançar com obras numa casa contígua, a sul, designada por "Casa da Fagulha 2". Tendo em consideração que em 2017 tinham surgido nas obras da “Casa Cor-de-Rosa” importantes estruturas romanas e um não menos interessante conjunto de estátuas associadas ao culto imperial (que vieram confirmar que, afinal de contas, eu tinha razão no que concerne à existência de um possível fórum naquele local), a autarquia solicitou-me que retomasse o trabalho que tinha feito alguns anos antes. Após um diálogo muito assertivo decidimos em conjunto avançar com um novo paradigma no que concerne aos trabalhos arqueológicos. Ou seja, antes fazia-se o projeto e a arqueologia só entrava na fase de obra. Como foram sempre feitas grandes descobertas, no caso de Mértola, (vide biblioteca municipal e "Casa Cor-de-Rosa"), existiu sempre a necessidade de alterar os projetos iniciais. Neste caso, seguiu-se por um caminho diferente: primeiro executaram-se sondagens nos espaços livres, com dimensões suficientes para perceber os contextos arqueológicos, sem colocar em causa a integridade do edifício, para depois se decidir por que tipo de intervenção arquitetónica se iria optar e como se iriam proteger e conservar os vestígios arqueológicos encontrados.

 

Os trabalhos decorreram em bom ritmo (superior ao esperado) e permitiram recolher informações importantes sobre a evolução histórica da vila de Mértola, sobretudo no que diz respeito às suas origens enquanto povoado na transição do primeiro milénio antes da nossa era, do período correspondente à II Idade do Ferro e aos períodos de domínio romano, visigótico e islâmico.

 

No decorrer desta intervenção foi possível identificar estruturas em taipa (as primeiras bem preservadas no interior da "vila velha"), alguns alicerces de paredes, uma sequência de vários pavimentos com cronologias situadas entre os séculos X e XXI, vários silos datáveis de época islâmica, muito provavelmente todos eles construídos no decorrer do século XII, algumas paredes (uma das quais, eventualmente, datada da Antiguidade Tardia) e ainda um grande embasamento de época romana.

 

Pelo que foi possível verificar, na casa intervencionada resta muito pouco das estruturas de época romana que foram identificadas, pois foram desmontadas até à base ainda em época remota, à qual não nos foi ainda possível atribuir uma cronologia mais assertiva. Apenas numa das sondagens surgiram estruturas que podemos atribuir à Antiguidade Tardia, mas não mais do que isso. A identificação de um grande embasamento, demolido quase na totalidade, sobre o qual assenta uma parede de época romana tardia/visigótica, confirma que estamos numa zona onde existiam edifícios públicos, podendo este embasamento encontrar-se associado a qualquer estrutura do fórum, ou a outro edifício público. Ou seja, confirmaram-se os dados obtidos na intervenção anterior.

 

Relativamente à época islâmica, as várias sondagens efetuadas forneceram indícios da existência de espaços habitados no decorrer dos séculos X e XI (pelo menos) com testemunhos de destruição no século XII, num dos casos por ação de cheia. No século XII foram construídos vários silos, alguns dos quais sobre as paredes das antigas habitações. Sabe-se hoje que entre setembro de 1169 e setembro de 1170 o sul do Al Andaluz, onde também nos encontramos, foi assolado por vários sismos violentos e diversas cheias gigantescas. Teremos por aqui indícios dessas ocorrências? Terão esses acontecimentos provocado a necessidade de reconstruir a atual cintura amuralhada de Mértola? Terão as constantes cheias que registámos em várias das sondagens efetuadas provocado o abandono das casas situadas nesta zona (transformando-a num vasto espaço de armazenamento em finais do século XII/inícios do século XIII) e provocando a necessidade de construir um novo bairro próximo da Alcáçova?

 

Não sendo muito extensas, as duas intervenções permitiram obter informações muito importantes para uma melhor compreensão da evolução do urbanismo de Mértola entre os séculos I a.C. e o início da ocupação portuguesa. Também foi possível recolher um imenso espólio, onde todas as épocas estão bem representadas e que vai permitir um conjunto de estudos que terão por objetivo ajudar a perceber a integração de Mértola nos grandes circuitos comerciais ao longo de cerca de três mil anos.

 

A prática ora seguida poderá continuar a ser implementada com sucesso, mesmo em grandes projetos privados, tendo já sido parcialmente adotada numa obra em Faro. A partir do momento em que se executa uma escavação arqueológica prévia a um projeto, os resultados obtidos irão determinar a elaboração daquele, ao mesmo tempo que permite uma intervenção mais cuidada, com uma melhor “leitura” dos resultados. Todos poderemos ter a ganhar: o arqueólogo que sente o seu trabalho valorizado, o proprietário que passará a ter menos gastos com revisões de projetos e consequentes atrasos na obra e a tutela, que passará a ver o património cultural mais protegido.

 

Nada disto seria possível se não existisse um importante diálogo entre a arqueologia e os políticos que conduzem os destinos de um município que, creio eu, é aquele que tem investido mais na arqueologia no distrito de Beja ao longo do século XXI. Fosse assim noutras zonas do país e os problemas registados na Sé de Lisboa não teriam acontecido e o nosso património estaria muito mais bem tratado e divulgado.

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