Diário do Alentejo

Comboio perde com o autocarro nas ligações a partir de Beja

17 de setembro 2020 - 15:25

O comboio só é mais rápido que o autocarro nas ligações de Beja às estações de Braga, Aveiro, Coimbra, Santarém e Lisboa. Perde nos restantes destinos. E é mais caro e obriga a mais transbordos.

 

Texto Carlos Cipriano

 

De Beja para 16 cidades desde o Minho ao Algarve. Vale a pena ir nos comboios da CP ou nos autocarros da Rede de Expressos? A resposta é óbvia no quadro que resume a média das três viagens mais rápidas dos dois modos de transporte. O autocarro bate o comboio em nove destinos em todo o país, sendo a CP competitiva apenas no eixo da linha do Norte, onde circulam os seus comboios de longo curso mais rápidos (Alfa Pendulares e Intercidades).

 

Onde o modo rodoviário tem os seus tempos de percurso mais curtos face ao ferroviário é para a Guarda, Castelo Branco e Faro, com viagens que são entre 1 hora e 40 minutos a 2 horas mais rápidas. Para a Régua, Caldas da Rainha, Leiria e Évora o autocarro chega também cerca de uma hora mais cedo do que o comboio. E só para o Porto a diferença é discutida por 14 minutos a favor da Rede de Expressos. Curiosamente há dois destinos para os quais CP e Rede de Expressos empatam. São Viana do Castelo e Setúbal.

 

Lisboa, no entanto, é do domínio do comboio. De Beja para a capital demora-se 2 horas e 5 minutos sobre carris contra as 2 horas e 35 minutos nas autoestradas. Uma significativa diferença de meia hora. E para Aveiro e Coimbra o comboio vence o autocarro, respetivamente, por 35 e 20 minutos.

É certo que a CP consegue tempos de percurso relativamente eficazes para as cidades mas populosas (para o Porto só perde por apenas 14 minutos), mas também é verdade que na definição de uma viagem não importa só o tempo de trajeto. O preço, o número de transbordos e a frequência são fatores importantes. O estudo não tem em conta o número de ligações à partida de Beja, mas compara o preço e as ruturas de carga. E aqui a CP perde em toda a linha: os comboios são sempre mais caros, com as exceções de Caldas da Rainha e Évora onde é, respetivamente, 4,22 euros e 0,55 euros mais barato.

 

Nos outros destinos o autocarro é sempre mais competitivo, apesar de para Aveiro e Lisboa só ganhar por dez e cinco cêntimos. As diferenças, porém, são abismais para Guarda, Faro e Lagos onde o comboio consegue ser mais caro em mais de dez euros. E nos transbordos? Costuma dizer-se que o comboio é mais cómodo e oferece uma experiência de viagem mais reconfortante porque tem mais espaço, os passageiros podem circular, tem casas de banho e alguns até possuem cafetaria. Tudo isso é verdade, mas também seria necessário que um passageiro pudesse apanhar o comboio em Beja e seguir direto para o seu destino.

 

A CP, porém, brinda os seus clientes com inúmeros transbordos que fazem com que o modo ferroviário venha – também neste campo – a perder face à Rede de Expressos. Não há nenhuma ligação direta de comboio desde Beja para qualquer cidade do país. O número de transbordos oscila entre um (apenas para Lisboa e Évora) e três, chegando mesmo a quatro para Leiria. Isto significa que é preciso apanhar quatro comboios para se chegar, por exemplo, a Viana do Castelo, Régua, Braga, Caldas da Rainha ou Lagos. E mesmo para Setúbal, Faro ou Santarém são necessário três comboios para se chegar ao destino.

 

Pergunta-se: como pode a ferrovia do Alentejo ter chegado a este ponto? Sendo certo que Évora tem melhores ligações porque possui Intercidades diretos a Lisboa, o caso de Beja é emblemático de como o caminho-de-ferro bateu no fundo nesta região. Vejamos os três pontos: velocidade, preço e número de transbordos.

 

A forma como a CP organiza a sua oferta para Beja prejudica-a, logo à partida, porque se resume à realização de comboios regionais até Casa Branca. As automotoras que ali circulam são das mais envelhecidas de toda a frota da CP. As UDD (Unidades Duplas Diesel) foram construídas na Sorefame nos anos 60 do século passado e foram à época um verdadeiro luxo. Possuíam motores Rolls Royce e fizeram serviço nas linhas do Oeste, Minho e Douro, chegando inclusive, a realizar o Expresso de Salamanca entre o Porto e aquela cidade espanhola.

Em 1999, com 40 anos de serviço, foram inteiramente remodeladas e modernizadas. Passaram a ter novos motores, ar condicionado e um design mais de acordo com os padrões da época. Mas já passaram 20 anos. Duas décadas que coincidiram com um desinvestimento global na ferrovia portuguesa, com falhas graves na manutenção. Hoje as velhas UDD avariam frequentemente e arrastam-se penosamente entre Casa Branca e Beja (também prestam serviço no Algarve).

 

O verão de 2018 assinala o momento em que o serviço bateu no fundo, com supressões frequentes devido a avarias e atrasos de horas, com as automotoras paradas em plena via, e notícias pouco abonatórias para a CP na comunicação social nacional. Entretanto, a contratação de novos operários para as oficinas da CP e uma abordagem diferente na gestão do material por parte da administração da empresa, estancou a hemorragia: há menos supressões e atrasos, o serviço voltou a ter uma certa regularidade. Mas é medíocre. O conforto e a fiabilidade do material que serve Beja está longe de adequado aos parâmetros do século XXI.

 

Por outro lado, a infraestrutura é igualmente antiquada. A linha para Beja pode classificar-se como uma espécie de “fim da picada ferroviária”. A eletricidade e a eletrónica ainda aqui não chegaram. A linha não é eletrificada e nem sequer tem sinalização automática. A sua exploração é feita em regime de cantonamento telefónico, integralmente dependente de meios humanos e sem qualquer redundância de segurança informática ou eletrónica.

 

São os agentes da Infraestruturas de Portugal (IP) que, nas estações, pedem autorização à estação seguinte para os comboios avançarem. Os cruzamentos só podem realizar-se nas estações porque a linha é de via única. As agulhas e os sinais (mecânicos) são acionados manualmente. As operações demoram tempo. Temos, pois, comboios velhos e lentos e uma infraestrutura ferroviária igualmente envelhecida. Mas não é só isto que explica os tempos de percurso longos face ao autocarro. A opção da CP por não fazer comboios diretos entre Beja e Lisboa penaliza ainda mais o caminho-de-ferro. Além de incómodos, sobretudo para pessoas idosas, com mobilidade reduzida, com crianças e/ou carregadas com malas, as mudanças de comboio penalizam também o tempo de viagem.

 

Há algumas décadas era possível entrar tranquilamente num comboio em Beja e sair no Barreiro, onde se apanhava o barco para Lisboa. Com a inauguração do comboio na ponte 25 de Abril e a construção da linha de Campolide ao Pinhal Novo, houve ainda um tempo em que Beja chegou a ter Intercidades para Lisboa, rebocados por locomotivas a ‘diesel’.

 

Mas a CP entendeu que o serviço era muito caro e, quando a linha para Évora foi modernizada, optou por centrar a sua oferta rápida neste eixo e tornar a ligação a Beja num apêndice deste serviço. Para piorar as coisas, em 2011, com a ‘troika’ em Portugal e uma forte pressão para cortar prejuízos em tudo o que fosse público, o governo de Passos Coelho decidiu fechar a linha do Alentejo entre e Beja e a Funcheira, transformando-a num desqualificado ramal.

 

Enquanto isto, a CP mantinha uma política que multiplicava os transbordos em todo o país em vez de maximizar as viagens longas e diretas. É isso que explica, por exemplo, que de Beja para o Barreiro e Setúbal (duas cidades relativamente próximas e com fortes ligações ao Alentejo) a viagem por caminho-de-ferro obrigue a que se apanhe ...três comboios. Primeiro de Beja a Casa Branca, depois de Casa Branca a Pinhal Novo e daí para o Barreiro ou Setúbal.

 

Para o Algarve, Faro, Olhão ou Tavira as viagens de comboio implicam dois transbordos. E para Lagos a viagem não se consegue fazer com menos de quatro comboios. Em contrapartida, na Rede de Expressos, um passageiro de Beja para qualquer ponto do país tem no máximo um transbordo. E para Lisboa, Santarém, Évora, Setúbal e Faro tem até autocarros diretos. A empresa faz jus ao seu nome: funciona em rede. Ao contrário da CP.

 

Quanto aos preços, enquanto a transportadora rodoviária tem preços únicos entre uma origem e destino, independentemente do percurso efetuado e do local de transbordo, a CP possui um sistema complexo no qual o preço da viagem é construído somando as várias viagens e transbordos em função da tipologia do comboio utilizado.

Este tarifário penaliza as viagens mais longas (que deveriam ser proporcionalmente mais baratas) porque resultam de um somatório de várias viagens independentes. Por exemplo, de Beja para Lagos, o cliente da CP paga uma viagem de Intercidades entre Beja e Pinhal Novo (apesar de até Casa Branca o serviço estar ao nível de um Regional) mais um bilhete no Alfa Pendular entre Pinhal Novo e Tunes, mais um Regional entre Tunes e Lagos. A soma disto tudo dá 30,60 euros. Se entre Pinhal Novo e Tunes for no Intercidades, custará 27,65 euros. A Rede de Expressos faz o mesmo serviço com um único transbordo em Albufeira e cobra apenas 14,70 euros. E é 1 hora e 17 minutos mais rápida.

 

Tornar o caminho-de-ferro do Alentejo mais competitivo não depende só de avultados investimentos na infraestrutura e no material circulante. É certo que é necessário eletrificar e modernizar a via férrea, aumentando as velocidades para encurtar os tempos de percurso. E também é verdade que são necessários comboios novos, mais rápidos e confortáveis. Mas há coisas que se podem fazer por zero cêntimos. E uma delas são melhorar os horários e o tarifário, tornando-os mais atrativos por forma a captar clientes. 

 

Reabrir as linhas encerradas

Eduardo Zúquete, que foi quadro da CP entre 1969 e 2000 e assessor de vários governos na área dos transportes nas décadas de 70 e 80, confessa-se desiludido com o rumo do caminho-de-ferro no Alentejo. “Uma das imagens fortes da minha infância é a estação do Sul e Sueste no Terreiro do Paço. Fascinavam-me os 10 painéis de azulejos que representavam a cidade de Lisboa e as restantes nove cidades do Alentejo e do Algarve servidas pelos então Caminho-de-Ferro do Sul e Sueste: Beja, Estremoz, Évora, Faro, Lagos, Portimão, Setúbal, Silves e Tavira. Tratava-se de um evidente simbolismo à coesão proporcionada pela via férrea. Impressiona-me vivamente que estas ligações sejam hoje muito mais difíceis do que eram – ou até mesmo impossíveis – e concluo que, por baixo da serapilheira grosseira do falso progresso, houve afinal, com a reiterada despromoção do caminho-de-ferro, que persiste, um flagrante retrocesso civilizacional”.

 

O também professor universitário defende a reabertura da rede ferroviária alentejana. “Ao contrário do que acontece no resto do território, o povoamento no Alentejo está tradicionalmente concentrado, o que facilita a sua reabilitação. Hoje os novos povoadores, que tanto procuramos para combater a desertificação, irão exigir acesso rápido à saúde, ao ensino, à cultura, à tele-informação e à plena cidadania, que só cidades de média dimensão podem proporcionar. Por isso, cidades sustentáveis, agradáveis para viver, com parques, serviços de proximidade e curtas distâncias entre a residência e o trabalho devem estar ligadas entre si e à capital por comboios automotores pequenos, discretos mas muito frequentes, para evitar a penosa sensação de abandono que os maus transportes imprimem. É por isso que acho que a antiga e excelente rede ferroviária do Alentejo deve ser reaberta e requalificada para que a região se torne uma referência de uma temperada modernidade”.

 

A rede ferroviária alentejana já chegou a ter quase 1200 quilómetros de extensão, mas 437 quilómetros de linhas foram encerradas. Vale a pena ver os troços onde o comboio deixou de apitar:

Torres das Vargens – Beirã 73 quilómetros

Torre da Gadanha – Montemor-o-Novo  sete quilómetros

Évora – Mora 60 quilómetros

Évora – Portalegre 122 quilómetros

Estremoz – Vila Viçosa 17 quilómetros

Évora – Reguengos de Monsaraz 40 quilómetros

Beja – Moura 58 quilómetros

Beja – Ourique 52 quilómetros

Ramal de Aljustrel oito quilómetros

 

A maior razia ocorreu na década de 90 do século passado. Quem hoje tem menos de 40 anos já não tem memória do tempo em que as suas vilas ou cidades eram servidas pelo caminho-de-ferro. Restam ainda os canais ferroviários, alguns transformados em ecopistas e muito património abandonado: as típicas estações, com o edifício de passageiros, a casa do chefe da estação no primeiro andar, o cais das mercadorias, os dormitórios do pessoal, as casas das guardas de passagem de nível. E muitos quilómetros de carris enferrujados.

 

A maioria das linhas foi encerrada no dia 1 de janeiro de 1990. Durante 30 anos julgava-se que a ferida estancara. No início do século XXI contavam-se 312 quilómetros de linhas abandonadas. Mas em 2011 foi-se mais longe e aconteceu o impensável: fechou a linha fronteiriça Torre das Vargens – Marvão/Beirã e a ligação Beja – Ourique. Uma curiosidade: na rede ferroviária nacional foram as regiões do Alentejo e Trás-os-Montes que tiveram mais quilómetros de linhas encerrados. Não por acaso, quando hoje se fala no combate à desertificação do interior e na coesão territorial, entra na equação o fim dos serviços públicos nessas regiões, entre eles, o transporte ferroviário.

 

E é assim que voltamos à reflexão sobre a reabertura das linhas no Alentejo. Eduardo Zúquete acha que, tão ou mais importante do que meia dúzia de Intercidades diários de Évora e Beja para Lisboa, é a ligação entre as cidades e vilas alentejanas através de serviços ferroviários frequentes. “Os comboios não têm que ser poucos, grandes, rápidos e andarem muito cheios. Devem ser muitos, pequenos e assegurarem uma oferta que privilegie a frequência em vez das taxas de ocupação. Por vezes não vale a pena gastarem-se milhões para ganhar 15 minutos no tempo de percurso. Qualquer jovem responderá que prefere é um comboio com Internet a bordo. O tempo ocupado na viagem tem hoje outra valorização porque pode ser passado a trabalhar”.

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