Diário do Alentejo

Covid-19: Taxista de Beja em quarentena no seminário

04 de setembro 2020 - 19:05

Taxista em Beja há 21 anos, Francisco Duarte fez no final de agosto um frete que lhe haveria de valer 15 euros. 15 euros e 14 dias de clausura no seminário de Beja. Os seus dias são passados num espaço de seis metros por cinco: “Dá para andar aqui um bocado. Ando de dia e de noite”. Duas semanas em confinamento, apesar do teste à covid-19 ter dado negativo.

 

TEXTO Luís Miguel Ricardo

 

É uma história destes dias de pandemia. Taxista em Beja, Francisco Duarte pegou no carro pelas nove da manhã, do passado dia 22 de agosto, rumo à Salvada, para fazer o transporte de um passageiro para a urgência do Hospital José Joaquim Fernandes. Uma “corrida” de 12 quilómetros, com o cliente transportado no banco de trás da viatura, separado do condutor por um acrílico, conforme recomenda a DireçãoGeral de Saúde. Garante o taxista – “palavra de honra” – que não se recorda se o passageiro, aflito por chegar ao hospital, estava ou não a utilizar máscara.

 

“Acho que trazia”. Terminado o serviço, Francisco Duarte recebeu o valor da “corrida”, precisamente 15 euros, “pago em dinheiro certo”, sem direito a troco, pela abertura do acrílico, seguindo a sua rotina de todos os dias. O problema estava para vir. Chegou no dia seguinte, logo pela manhã, quando o hospital de Beja, depois de proceder a averiguações sobre o meio de transporte usado pelo paciente que ali tinha chegado, entrou em contacto com a praça de táxis da cidade na expectativa de localizar o mais rapidamente possível o taxista que havia transportado um dos primeiros doentes com covid-19 na aldeia de Salvada.

Não foi difícil de localizar. Do outro lado da linha, o taxista lá ouviu um resumo do que tinha sucedido, logo se apercebeu de que estava “em apuros”, e recebeu indicações precisas sobre a necessidade de suspender a atividade – o táxi teria de ficar encostado – e de entrar o quanto antes num período de confinamento de forma a minimizar o risco de contágio. “Se tenho de fazer quarentena, têm de me arranjar um sítio para onde eu vá sozinho, porque em casa não posso estar, não posso contactar com as pessoas da família”, desabafa Francisco Duarte, que nesse momento se viu sem “poiso” e sem possibilidade de trabalhar.

 

A resposta não tardou, tendo a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) disponibilizado dois locais possíveis para acomodação do possível infetado: ou as instalações existentes no aeródromo, a alguns quilómetros da cidade, ou um quarto no seminário diocesano. É verdade que estando impossibilitado de andar pela rua, confinado às quatro paredes de um edifício, as alternativas não eram muitas.

 

O táxi não transportou mais passageiros. E o taxista refugiou-se do mundo no primeiro andar do seminário de Beja, onde lhe foi franqueado um espaço com todas as condições: um corredor, uma sala com televisão, um quarto. E, claro, as refeições a tempo e horas, deixadas à porta por um padre, com salvaguarda das devidas e necessárias medidas de segurança. Sobre as pessoas transportadas na viatura depois do passageiro da Salvada não há registo de qualquer incidente, seja por se tratar de gente com identidade desconhecida, seja pelo risco de contágio não se mostrar especialmente preocupante.

E do dia 23 em diante, está agora a completar duas semanas, Francisco Duarte só por uma vez saiu do seminário – foi na sexta-feira, dia 28 de agosto, altura em que realizou um teste de despistagem à covid-19. O resultado ser-lhe-ia comunicado dois dias depois, também pela manhã: Negativo. O que, neste caso, é positivo. Ou seja, não havia vestígios de coronavírus no corpo do taxista. Nada de nada. Nenhuma infeção. Mas a obrigatoriedade de continuar confinado por mais alguns dias, pois recomenda a prudência que em tempo de pandemia é melhor não levantar a guarda.

 

É através do telefone que Francisco Duarte conta ao “Diário do Alentejo” o ritmo, lento, dos seus dias de confinamento, passados com a paciência e a lucidez, possível, que o momento pressupõe: “Não tenho horários, nem para me deitar, nem para me levantar. Ontem deitei-me pelas sete e meia. Mas tenho de andar. O quarto ainda tem para aí uns seis metros, da porta à janela, e uns cinco metros de largura. Dá para eu andar aqui um bocado. Ando de dia e de noite. Levanto-me sempre cedo. Às seis e meia, sete horas, há estou a pé. Levanto-me e abro a janela”.

 

Com o teste negativo, sem qualquer dos sintomas de alerta referenciados pelo enfermeiro que o acompanha à distância, tais como dores no corpo, erupções cutâneas, dores de garganta, dores de cabeça ou lacrimejar dos olhos, Francisco Duarte subtrai os dias que o separam do desconfinamento, os dias que o separam do trabalho, os dias que o separam da família, os dias que o separam da vida que evolui para lá dos limites do primeiro piso do seminário de Beja. Amanhã, sábado, dia 5 de setembro, 14 dias após de ter entrado em reclusão, 15 dias depois de ter transportado o primeiro paciente com covid-19 da Salvada, Francisco Duarte deverá ser devolvido à azáfama do quotidiano em tempos de pandemia. Para contar, fica a história dos dias de angústia passados na clausura de um quarto de seminário.

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