Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: "Ó vinho, volta para trás!"

10 de maio 2020 - 11:00

Será que já não nos basta o anedotário em que vivemos? Uma espécie de tragicomédia dantesca capaz de converter um homem inteligente num homem trágico? Em que o horror é ultrapassado pelo trivial convertendo-o no maior dos absurdos? Será que nós merecemos isto? Não somos diferentes disto?

 

Esta indignação surge do último golpe lançado pela indústria do vinho intitulada “Provas de vinho digitais”. Isto mesmo, ouviram bem? As mentes felizes, que tiveram esta infeliz ideia, não devem ter prestado muita atenção ao significado das palavras, e ao tentarem juntá-las formaram o maior paradoxo vínico do século XXI: prova de vinho digital.

 

Assistimos a uma verdadeira transgressão vínica em tempos de pandemia vírica!  Não nos bastavam já os enochatos, aquela categoria de gente aborrecida capaz de destruir o vinho com uma frase, tristes dependentes dessa capacidade de alardear despropositadamente conhecimentos como se tivessem num laboratório 20+?

 

Beber um vinho é um ato social de puro prazer, uma satisfação que se partilha com os amigos, um momento de alegria capaz de gerar emoções diretas e indiretas que muitas vezes apetece recordar mais tarde. Tomam-se notas sobre as colheitas provadas e sobre os momentos de partilha, aumentando o prazer que permite fixar a ocasião para mais tarde recordar. Sem falar na importância que tem na história e na cultura portuguesas.

 

O que estes senhores propõem é vilipendiar um objeto de culto! Isto apenas não será estranho para aqueles que reduzem o vinho a um mero instrumento económico; que transformam beber um vinho num ato de poder e afirmação social.

 

Nos tempos atuais, assistimos ao triunfo da “brigada iletrada écranizada”, utilizando as palavras do senhor Martin Amis para ilustrar um mundo saturado pelo audiovisual, cuja realidade é totalmente apreendida e absorvida pelo ecrã, movida pelo ritmo frenético das televisões, substituindo-se totalmente, esta “realidade”, ao plano dos sentidos.

 

Neste admirável mundo novo, a audiência de provadores é maioritariamente iletrada, com uma cultura vínica muito baixa, como defende o grande enólogo Paulo Nunes.  Quem estará agora para se chatear e investir o seu precioso tempo e dinheiro na aquisição de um amável néctar, e ter que levar com estes orgulhosos verborreico-soberbos de palato altivo, que através do atordoante ecrã nos tentam encher os ouvidos de menores sentires?!

 

O grande “patriarca” Paulo Laureano sugere: “Seria importante aproveitarmos estes tempos de forçosa pausa para reflexão num mundo em que se escreve e pensa tudo com demasiada rapidez deixando para trás a alma das coisas”. E eu proponho, saborear devidamente o amável néctar no sossego e recanto do lar, longe do ruído das televisões, enquanto refletimos em algo inteligente para fazer no amanhã pós-pandémico, pode ser?

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