Diário do Alentejo

Vila Alva: Adegas preservam tradição do vinho de talha

15 de novembro 2019 - 00:00

Processo de fabrico de vinho em potes de barro foi trazido pelos romanos para a Península Ibérica há cerca de dois mil anos. Manda a tradição que pelo São Martinho se abram as talhas e se inicie o consumo do vinho novo, sendo certo que há cada vez mais gente interessada em conhecer os segredos desta “arte” milenar. Em Vila Alva, terra com uma longa história associada ao vinho de talha, as ruas enchem-se de gente este fim de semana para provar o vinho feito nos “tarecos”.

 

Texto Luís Godinho

Fotos José Ferrolho

 

Entre produtores, viticultores, enólogos e enófilos, tanta gente ligada ao mundo do vinho, há um trabalho que quase passa despercebido, apesar de ser essencial para que das boas uvas, vindimadas na altura certa, possam resultar bons vinhos. “Durante a fermentação sou eu que estou encarregado de garantir que tudo corre pelo melhor”. Ele chama-se João Santos, tem 66 anos de idade, e como todos os outros adegueiros, por regra homens de longa experiência e arte aprendida de forma empírica à volta dos potes, tem um trabalho fundamental no processo de fabrico do vinho de talha.

“Comecei a vir para esta adega com 20 e poucos anos; foi aqui que comecei a ter conhecimento sobre a forma de fazer vinho. O ‘mestre’ Daniel já tinha uma certa idade, era muito forte e não conseguia subir para o escadote, muito menos mexer as balsas. Então dizia-me como fazer mas sempre com a advertência de não contar lá fora o que se passava na adega. Cada um guarda os seus segredos”. Mexer as balsas é tarefa do adegueiro. A ela nos iremos referir daqui a pouco, não sem antes recordar que o essencial da vinificação em talha pouco mudou em mais de dois mil anos, desde que os romanos trouxeram para a Península Ibérica esta forma de fazer vinho. As uvas são esmagadas e colocadas dentro das talhas de barro, onde a fermentação ocorre de forma espontânea. Durante o processo as películas das uvas sobem à superfície formando uma capa sólida que é preciso mexer de forma regular.

 

É aqui que entra o adegueiro, em cima de um escadote, por vezes até em cima do próprio barro, munido de uma vara de madeira com ponta em cruz apelidada de “rodo”. Duas vezes por dia, nas primeiras semanas de fermentação, depois apenas ao anoitecer, as massas das uvas são mergulhadas no mosto e empurradas para o fundo do pote, procedimento essencial para transmitir ao vinho mais cor, aromas e sabor, ou seja, para garantir a qualidade do produto final.

 

“O segredo do vinho de talha consiste em pôr boas uvas dentro dos potes e olhar bem por elas enquanto decorre a fermentação. Se as balsas não forem bem mexidas podem secar e dar mau gosto ao vinho”, conta João Santos, que além de adegueiro é também produtor de vinho de talha, ou não se tratasse de um “filho” de Vila Alva, uma das terras com mais história neste processo de fabrico. “Tenho dois potes pequenos, um com cerca de 100 litros e outro com um pouco menos, para o consumo da casa. Já faço vinho naqueles potes há mais de 30 anos e, pela primeira vez, o tinto ainda está a fermentar. Este é ano de muito bom vinho”.

 

O trabalho que hoje em dia é feito por adegueiros como João Santos foi testemunhado, por exemplo, em meados do século XIX por João Inácio Ferreira Lapa, professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia, que percorreu boa parte dos centros vinhateiros do Sul do País assinalando que em todo o Alentejo era adotado o uso das talhas de barro, "não só para as operações da vinagem, senão também para guarda e conserva dos vinhos depois de feitos". Garantindo não existir memória da época em que este uso se introduziu na região, explica que "bem fundadas conjeturas baseadas na figura destes vasos vinários, muito semelhantes aos de que se serviram os romanos para idênticos fins, levam a crer que ele se introduzira na província desde o tempo da dominação romana". Daí apelidar o sistema de vinificação nas talhas como "sistema romano".

Na sua Memória Sobre os Processos de Vinificação, apresentada ao ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria em agosto de 1866, João Inácio Ferreira Lapa diz que a região de Cuba, Vidigueira, Vila de Frades e Vila Alva está “fazendo grossa exportação de seus vinhos, mais delicados que os de Évora, não só para outros pontos da província, mas para Setúbal e Lisboa”. Interessante é também a descrição que nos deixa de uma viagem à vila de Cuba, onde é recebido por um dos maiores proprietários agrícolas do País: “A adega do senhor visconde da Esperança é verdadeiramente um templo, um grande templo consagrado a Baco, de três vastas naves com arcarias que enfiam em sentidos cruzados. Ao longo das pilastras que sustentam as arcarias alinham-se em filas quase duzentas talhas de barro pesgadas. É uma completa exposição deste género de vasilhame, porque entre elas se encontram de todas as figuras e tamanhos, conforme a terra aonde foram fabricadas”.

 

Em meados do século XX ainda existiriam em Vila Alva cerca de mil talhas, das quais restam perto de 200. Das 72 adegas onde ali se fez vinho – entre as quais a do “Chico Topa”, do “Calmança” ou do “Almeirão” – subsistem 22, embora 14 destas – como as do “Carapuço”, do “Espanta” ou do “João das Jóias” – estejam desativadas. Restam então as adegas do Francisco Cerejo, do “Guel”, do Izalindo Marques, do João Carraça, do José Francisco Arvanas, do Manuel Fernando e do Marcos “do Panóias”, além da do “mestre” Daniel, onde João Santos desempenha as funções de adegueiro.

 

Além de produzir vinho, Daniel António Tabaquinho dos Santos utilizava também o espaço para trabalhar como carpinteiro, profissão à qual as gentes de Vila Alva foram buscar o substantivo que lhe haveria de anteceder o nome. Seguindo uma tradição herdada de pais e avós, “mestre” Daniel dedicou-se ao vinho durante 30 anos. A sua morte em 1985, com 62 anos, fez com que a atividade entrasse em declínio, tendo a adega acabado por encerrar. Em 2018 a tradição local e familiar de produção do vinho de talha haveria de ser retomada, com a fermentação a ser feita em 26 talhas, algumas delas datadas do século XIX.

 

José Pernicha, um dos familiares do “mestre”, dá uma ajuda em todo o processo. “Lembro-me bem de neste espaço existir a carpintaria e a adega, de o Daniel fazer vinho para o consumo da casa e para os amigos que aqui vinham beber um copo. Hoje dou uma ajuda a fazer o vinho mas o que gosto mesmo é de o provar. O deste ano, sobretudo o branco, está mais encorpado, mais bem apaladado do que o do ano passado. Na minha perspetiva está melhor”.

 

De acordo com a Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo (CVRA), a ânfora de barro é um dos mais antigos recipientes para conservar e transportar líquidos. Na sua versão de maior dimensão, a talha, serve desde há mais de dois milénios para fazer vinho, uma tradição que o Alentejo nunca perdeu. “Dados históricos indicam que a talha existe desde a época romana, ou seja, há sensivelmente mais de dois mil anos. Assim aponta, por exemplo, o facto de sabermos por gravuras que os romanos vinificavam e guardavam os seus vinhos em potes e vasos semelhantes, ou mesmo iguais, às talhas que ainda hoje encontramos em Portugal”.

 

Dizem os etimologistas que talha deriva do latim tinalia que significa vaso ou vasilha de grandes dimensões. “Uma talha é, portanto, um pote de barro, mais ou menos poroso de acordo com o tipo de argila de que é feito, com o destino de permitir a fermentação de mostos vínicos e posterior armazenagem de diversos produtos líquidos com destaque para o vinho”.

Na Memória Sobre os Processos de Vinificação, já aqui referida, João Inácio Ferreira Lapa diz que o fabrico de talhas é generalizado em todo o Alentejo, sendo que Vila Alva, Cuba, Serpa, Vidigueira e Campo Maior “fornecem a maior parte de vasilhame para todos os pontos da província”, onde a utilização da madeira era “pouco vulgar” ou “quase nula”.

 

Com capacidade máxima para produção de dois mil litros de vinho, a propriedade das talhas estava reservadas para os produtores e/ou grandes proprietários de terra. O mais comum dos mortais ficava-se por potes mais pequenos, denominados “tarecos”, nos quais produzia o vinho suficiente para o consumo da família durante o ano. “Não havia a Adega Cooperativa da Vidigueira e cada pessoa produzia as suas uvas que depois transformava em vinho nesses potes mais pequenos. Os grandes agricultores tinham as talhas. O povo fazia o vinho nos tarecos. Fazia e faz”, diz José Pacheco, presidente da Junta de Freguesia de Vila Alva, que neste fim de semana organiza a iniciativa “Provando o tareco”, na qual os pequenos produtores dão a provar o vinho produzido neste ano. “Detentora de vinhas centenárias – únicas na região – e de uma série de adegas, a freguesia mantém até hoje a tradição da produção artesanal de vinho, com muitos dos seus habitantes a ter em casa o seu próprio tareco. Vila Alva tem no São Martinho a celebração de uma das suas manifestações mais populares”. Uma celebração onde há provas de vinho, mas também petiscos tradicionais e, claro, cante alentejano.

 

“Ainda se faz muito tareco, para as pessoas de casa e para os amigos… o vinho traz também a gastronomia e depois sempre se puxam algumas modas. Temos uma tradição muito antiga no fabrico de vinho de talha e somos a região onde há mais vinhas centenárias”, acrescenta o autarca, segundo o qual a procura do vinho de talha “alavancou” nos últimos anos: “Isto virou moda, sobretudo desde o anúncio da candidatura a Património da Humanidade. Está sempre a aparecer gente para provar o nosso vinho, pessoas interessadas em saber como se faz e em visitar as nossas adegas”.

 

“TEMOS DE METER AS MÃOS NA MASSA PARA CHEGAR A UM BOM RESULTADO”

Foi na casa outrora pertencente ao escritor Fialho de Almeida, no centro da vila de Cuba, hoje transformada em museu, que começou a ligação de João Canena ao vinho de talha. Era ali que vivia o seu avô, João António Abundância, conhecido na terra como “Quica”, que ali tinha uma adega com alguns potes de barro onde todos os anos se fazia vinho. “Foi ele que me incutiu o gosto pelo vinho de talha”, diz João Canena, cujo início nestas “artes” se deu em 1997, ainda longe de imaginar que se haveria de tornar no maior produtor nacional. Nas três adegas de que é proprietário, duas em Cuba e outra em Vidigueira, fazem-se mais de 40 mil litros por ano.

“Faço vinho de talha, de forma ininterrupta, há 22 anos. Nalguns anos fiz pouco, apenas uma talha de branco e outra de tinto, mas nunca desisti de o fazer”. Nem mesmo quando se deu o boom da tecnologia e das adegas modernas, no início do século, altura em que começou a “moda” dos vinhos tecnológicos e dos monocastas. João Canena chegou a investir numa adega de inox, o enólogo com quem trabalhava recomendou-lhe que reutilizasse as talhas para fazer decoração mas, garante, “nem me passou pela cabeça” abandonar a forma tradicional de fazer vinho.

 

“É uma paixão, uma coisa da terra… temos de meter as mãos na massa para chegar a um bom resultado. É muito trabalhoso mas gosto muito desta autenticidade”. Segundo explica, o sucesso que os vinhos de talha têm alcançado nos últimos anos deve-se, sobretudo, a uma “tendência a nível mundial para descobrir o passado e os produtos mais naturais”, tendência essa que vai ao encontro deste tipo de vinhos. “É um produto singular, resultado de uma vinificação muito mais natural”.

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