Diário do Alentejo

“O amor que se sente pelo Alentejo é uma coisa que talvez nem toda a gente consiga perceber”

30 de novembro 2023 -
Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

Texto Luís Miguel Ricardo 

 

Define-se como um alentejano de gema. Nasceu em Serpa, há 45 anos, mas reside em Beja. Tem formação em produção musical e trabalha na divisão de Cultura e Património da Câmara Municipal de Serpa. Foi técnico de som nos estúdios da Musibéria, também na sua cidade natal, e integrou o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa. Atualmente faz parte do projeto musical Os Alentejanos e da direção da Confraria do Cante Alentejano, sediada em Serpa. Enquanto cantador, tem participado em vários projetos, de que são exemplos: Celina da Piedade e Vozes do Cante; Custódio Castelo; e Carlos Leitão.

O primeiro contacto com o mundo da sétima arte deu-se no documentário “Alentejo, Alentejo”, que integrou a pasta da candidatura, que elevou o cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade, pela Unesco, no ano de 2014. Em 2018 interpretou a personagem principal do filme “Raiva”, de Sérgio Tréfaut, que lhe valeu, no ano seguinte, ser distinguido como melhor ator principal pela Academia de Cinema Português, Prémios Sophia. Esta interpretação abriu-lhe ainda as portas para a nomeação, na categoria de melhor ator, pela SPA – Sociedade Portuguesa de Autores e pelos Globos de Ouro, da “SIC”. Enquanto o filme, uma produção da Faux, foi distinguido e premiado em vários festivais de cinema em Portugal e no estrangeiro.

Para além da presença nestas duas produções cinematográficas, em 2019 participou na comédia romântica “Quero-te tanto“, do realizador Vicente Alves do Ó, com a produção da “TVI” e da UkbarFilme; no ano seguinte integrou o elenco do filme “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins, rodado no Reino Unido e que teve estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de San Sebastian, Espanha, em setembro de 2022, e estreia, em Portugal, em março de 2023, uma produção Uma Pedra no Sapato e coprodução Les Films de l’Après-Midi, Elation Pictures e Damned Films; em 2021 participou no filme “A Noiva”, também do realizador Sérgio Tréfaut, e que teve estreia mundial em setembro de 2022, no Festival Internacional de Cinema Veneza, sendo premiado no Festival Internacional de Cinema de Sevilha e tendo estreado, em Portugal, em janeiro de 2023.Eis Hugo Bentes, cantador e ator, na primeira pessoa.

 

Dos projetos cinematográficos em que se envolveu ao longo do percurso, há algum que tenha sido mais marcante?

Todos eles, de alguma forma, foram marcantes. Contudo, o filme “Raiva”, por ser o primeiro, pela sua história, mas, principalmente, pelo desafio que foi encarnar este personagem, e dar a conhecer ao mundo os tempos difíceis e as dificuldades que o povo alentejano sofreu na pele, foi aquele que mais marcou o meu percurso de ator.

 

Como “nasceu” o Hugo Bentes ator de cinema?

Apesar do mundo das artes sempre me ter fascinado desde miúdo, nunca me passou pela cabeça ser ator, mas aconteceu. Quando o Sérgio Tréfaut começou a gravar os grupos corais para fazer o documentário “Alentejo, Alentejo”, eu fazia parte no Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa. Era mais um cantador entre os muitos que participaram no documentário. A certa altura, o Tréfaut diz-me que gostaria que fosse eu o “rosto do cartaz” do filme “Alentejo, Alentejo”, argumentando que eu tinha a expressão, a força e o orgulho do povo alentejano. Para mim foi uma honra ouvir essas palavras e poder representar estes homens e mulheres que dignificam esta forma de expressão genuína. Algum tempo depois do documentário “Alentejo, Alentejo” ter estreado nas salas de cinema, o Sérgio disse-me que estava a escrever um guião baseado no livro Seara de Vento, do escritor Manuel da Fonseca, e que gostaria muito que eu o lesse. E eu respondi-lhe que teria todo o gosto, pensando ser para dar uma opinião. Uma semana depois, encontrámo-nos e ele perguntou-me: “Então, o que é que achaste do guião?”. Disse-lhe que tinha ali um guião soberbo, uma história que arrepia qualquer um e que podia acontecer em qualquer parte do mundo. E ele acrescenta: “Então, e se eu te disser que quero que sejas tu o protagonista do filme?”. Comecei a rir-me. Está a brincar comigo, só pode ser. Foi o que pensei e o que lhe disse, mas ele insistiu: “Não, estou a falar a sério”. “Mas tu sabes que eu não sou ator, não tenho qualquer experiência nessas andança”. Justifiquei-me, ele sorriu e rematou a conversa: “Hugo, tu és capaz!”.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para a representação?

A minha grande referência e influência cinematográfica sempre foi o Clint Eastwood. Acho que já vi os filmes todos dele! Cresci a ver os filmes de cowboys em que ele participava. Não sei se esse dom nasce connosco ou não, se o vamos adquirindo, mas foi no papel de “António Palma”, em “Raiva”, que descobri que, afinal, até tenho algum jeito para isto.

 

E a outra arte, a arte do cante alentejano, é conciliável com a emergente carreira de ator?

Desde que me conheço como pessoa que o cante alentejano faz parte de mim. Toda a minha família está ligada ao cante e ao mundo das artes. O bichinho está cá, é mais forte do que eu, e continuo ligado ao cante através do projeto Os Alentejanos. Quando me é possível conciliar as duas coisas, lá vou cantando umas cantigas. Mas já aconteceu, várias vezes, não poder, por estar a filmar, ou por estar em algum festival de cinema.

 

O Hugo jogador da bola, o Hugo cantor, o Hugo técnico de estúdio (luz e som) que papel tiveram na construção do Hugo ator?

Foi muito enriquecedora esta fase da minha vida, não só a nível pessoal, profissional, mas também a nível humano, pois conheci pessoas maravilhosas e aprendi muito com elas. Um grande obrigado a todas! O homem, quando atua sobre o mundo, relacionando-se, apropria-se da cultura e adquire linguagem; apropria-se dos significados e constrói um sentido pessoal para as suas vivências. Tem assim todas as condições para atuar com os outros, criar cultura e elaborar significados. O homem faz-se homem ao mesmo tempo que constrói o seu mundo.

 

Ser alentejano e viver no Alentejo é mais fonte de inspiração ou de limitações para a carreira?

Nunca me preocupou essa questão, pois, para mim, uma coisa não invalida a outra, não me sinto condicionado nem prejudicado por viver no Alentejo, muito pelo contrário, pois prefiro viver aqui, porque gosto do Alentejo. O amor que se sente pelo Alentejo é uma coisa que talvez nem toda a gente consiga perceber.

 

Como tem sido a experiência de bastidores?

Sempre fui muito bem recebido nos bastidores, tendo encontrado, tanto da parte dos atores, como de toda a produção, pessoas extraordinárias, pessoas de uma generosidade enorme.

 

Algum constrangimento?

O que me custou mais, e custa, é mesmo o tempo que por vezes temos de ficar à espera entre cenas, para gravar. Chegam a ser mesmo horas de espera, para depois gravar uma cena. Mas é assim mesmo, faz parte da profissão.

 

“Raiva”. Uma história crua e dura de um Alentejo martirizado pela época. Como foi assumir a responsabilidade de interpretar a personagem principal de um filme com uma dimensão dramática tão elevada?

O filme por si, para mim, já foi um enorme desafio. A aprendizagem foi em tempo real, nunca tive qualquer tipo de ensaios, nem de guião, nem de narrativa. Aquilo foi saindo, foi fluindo. A passagem do rio foi desafiante, os efeitos especiais, como o tiroteio no casebre, quando o Palma leva os tiros, e a cronhada no posto da GNR. Foi desafiante por causa do sincronismo, pois tudo tinha de estar perfeito. O mais complicado, na preparação do personagem, foi a nível físico, tive de perder algum peso e tive de fazer uma dieta controlada e treino de ginásio acompanhado. Perdi 15 quilos. Sobre a personagem, identifico-me bastante com ela, identifico-me desde o início, desde que o Sérgio Tréfaut me entregou o guião. Identifico-me com aquele homem e com a sua história, que tem muito a ver com o Alentejo e com os nossos antepassados. Está ali um bocado de Hugo também. Foi um orgulho, uma passagem de testemunho dos antepassados deste grande povo! É uma honra poder dar a conhecer, nesta película baseada em acontecimentos verídicos, o sofrimento que existia na altura, em que ser dono de grandes propriedades, na década de 50, significava, também, ter na mão o poder político, a guarda, a igreja, e ser dono dos homens, em suma, dar a conhecer o abismo entre pobres e ricos. O filme é um grito de indignação à injustiça social.

 

O filme “A noiva” levou-o para um contexto ficcional e cultural diferente e obrigou-o a fazer rodagens numa geografia distinta da nossa. Quais as principais dificuldades sentidas?

Foi um enorme desafio! A maioria das filmagens foi feitas no Curdistão iraquiano. O Iraque é um país que tem essa região autónoma, o Curdistão. É extremamente tranquilo viver ali. O Curdistão tem um exército próprio. Há várias linhas de checkpoint para passar de uma zona para outra. Arrisco-me a dizer que há mais tranquilidade nas ruas do Curdistão do que no Rio de Janeiro. Nós tínhamos uma produção executiva local, até porque existe uma tradição de cinema no Curdistão e há equipas treinadas para esse fim. Filmámos com curdos que eram curdos iraquianos e curdos iranianos. Dez por cento das filmagens foram feitas em Mossul, e isso está no filme. Quando estivemos nessa zona, aí, sim, fomos protegidos por vários carros de combate. Quando passávamos as fronteiras, tínhamos uma proteção muito grande, mas, curiosamente, sem caricaturar os soldados, quando tínhamos três carros de combate que nos acompanhavam, com soldados de kalashnikov, eles pegavam nos seus telemóveis para tirar selfies abraçados a nós. Eram miúdos de 20/25 anos que ali estavam com as suas armas para nos proteger quando íamos para Mossul, para o centro histórico, onde, aparentemente, ainda haveria algumas células do Daesh. O grande desafio era a língua, pois só havia duas ou três pessoas que falavam inglês. Este filme, “A Noiva”, é uma ficção inspirada em histórias reais de raparigas que se juntaram a combatentes do autoproclamado Estado Islâmico. O ponto-chave da película é desafiar o espetador a tentar perceber o que se passa na cabeça destas jovens. Para mim, a preparação do personagem foi o mais difícil. Retrata um “pai” de uma jovem luso-francesa que foge de casa para casar com um guerrilheiro do Estado Islâmico. Quando li o argumento, ao início, fiquei um pouco irrequieto com a história que tinha entre mãos, e dei por mim a pensar como poderia construir esse personagem sem, à partida, fazer qualquer tipo de juízo de valor, sendo eu pai. Tentar perceber os motivos que levam jovens a tomar estas decisões é, no mínimo, complexo.

  Quais as próximas produções em que vamos poder ver o ator Hugo Bentes?

 

Duas dela já tiveram estreia nacional neste ano: “A Noiva”, do realizador Sérgio Trefaut, filme premiado no Festival de Sevilla, New Waves Special Award; e “Great Yarmounth-provisional figures”, do realizador Marco Martins, indicado para “melhor filme europeu” pela Academia Portuguesa de Cinema para a 38.º edição dos Prémios Goya, que serão conhecidos a 10 de fevereiro de 2024, numa cerimónia que se realizará em Valladolid. Também a série “O Americano”, para a “RTP”, que poderá estrear ainda neste ano ou em 2024, e o filme “Projeto Global”, que começará a ser filmado em janeiro de 2024.

 

Que produções são estas?

“A Noiva”, conforme já referido, retrata uma adolescente europeia que foge de casa para casar com um guerrilheiro do Daesh. Torna-se uma noiva da Jihad. Três anos mais tarde a sua vida mudou dramaticamente. Vive num campo de prisioneiros, no Iraque, é mãe de dois filhos e está grávida. Mas agora é uma viúva de 20 anos e será brevemente julgada pelos tribunais iraquianos. Quem é esta adolescente, após três anos de guerra e de lavagem cerebral? “Great Yarmouth: Provisional Figures” (Reino Unido). Três meses antes do Brexit. Centenas de imigrantes portugueses continuam a chegar a esta vila costeira semiabandonada, outrora um destino balnear de eleição para a classe trabalhadora inglesa, em busca de uma vida melhor. Uma portuguesa, antiga trabalhadora das fábricas, está agora casada com um inglês e lidera uma rede de contratação de mão de obra barata, vinda de Portugal, para trabalhar nas fábricas de peru da região. Relativamente ao “Projeto Global”, é um filme/série do realizador Ivo Ferreira, com o argumento a ser escrito em colaboração com Hélder Beja e com o historiador Francisco Bairrão Ruivo, com produção da produtora O Som e Fúria, que começará a ser filmado em 2024, entre janeiro e maio, e será rodado em Portugal e no Luxemburgo. Trata-se de um filme megalómano sobre as FP25 (Forças Populares 25 de Abril). Uma ficção inspirada em acontecimentos reais, mas que, obviamente, vai muito para lá do que aconteceu nos anos 80, em Portugal. O meu personagem é um capitão das FP25. A série de oito episódios para a “RTP” “O Americano”, também do realizador Ivo Ferreira, é uma série produzida pela “Actions Per Minute”, que se encontra em pós-produção, estando a sua estreia prevista para o ano de 2024. Retrata a história de Faustino Cavaco, “O Americano”, e a sua participação naquela que foi a mais sangrenta fuga da história prisional portuguesa, e que ficou conhecida pela fuga dos irmãos Cavaco, em julho de 1986.

 

Alguma situação inusitada que tenha experimentado ao longo do percurso?

Tenho uma muito engraçada, que ocorreu quando estava a gravar, em Inglaterra, o filme “Great Yarmouth: Provisional Figures”. Quando chego ao set (local de filmagem) para começar a gravar, ouvi alguém a gritar “Clooney!” A Beatriz Batarda estava ao meu lado e eu comento com ela que o pessoal hoje anda muito bem-disposto. E ela diz-me a rir: “Já viste o que a imprensa local escreveu? Dizem que o George Clooney, que és tu, está a rodar cá um filme”. Foi uma risada pegada que se gerou no set.

 

Que sonhos artísticos moram em Hugo Bentes?

“Os sonhos comandam a vida”, mas saber ter os pés bem “assentes na terra” é muito importante, para não nos desiludirmos, nem iludirmos. É essa a minha maneira de estar na vida: saber aproveitar as oportunidades que nos surgem, com profissionalismo, humildade e dedicação, sempre com a noção de que nada nesta vida se pode dar como adquirido. Quando surgem proposta para projetos, acima de tudo, tenho de me identificar com os mesmos, com o argumento, com o personagem, até porque não sou de artifícios, sou muito terra-a-terra. As minhas decisões têm de fazer sentido, não aceito só por aceitar. E tenho a certeza disso quando percebo que o público se revê no personagem que eu interpreto e na história do filme. É isso que me complementa como ator, é esse o meu “sonho”, mais até do que qualquer prémio. Quando a mensagem passa, o meu papel como ator está cumprido. Sinto-me realizado!

 

O que está na “manga”?

Atualmente estou a filmar uma longa-metragem – “O última verão” –, um filme de Fernanda Polacow e João Nuno Pinto, com produção da produtora Wonder Maria. De momento, o que posso revelar é que a história aborda a temática das alterações climática e incertezas sobre o futuro. Mas o ano 2024 irá ser um ano com vários projetos na área do cinema. Para além dos já referidos, existem várias propostas em cima da mesa, ainda em processo de construção e de candidatura ao ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), mas que deverão iniciar-se a partir do segundo semestre de 2024. Gostaria de poder revelar mais sobre estes projetos, mas ainda não me é possível adiantar pormenores. Na área da música, também tenho um novo desafio, o projeto “Vagar”, que é uma ideia do Carlos Martins (saxofonista), e que vem desde antes da pandemia. Este projeto promete uma fusão única de cante alentejano e de jazz, apresentando oito cantadores e oito instrumentistas, com modas do cancioneiro alentejano e letras originais, algumas escritas pelo escritor José Luís Peixoto e compostas pelo Carlos Martins, numa combinação musical inovadora, mas onde o cante mantém a sua essência e caraterística. O projeto “Vagar” teve o seu pré-lançamento no passado dia 26 de outubro, no Cine-Granadeiro, em Grândola, com sala esgotada, e em que a reação do público foi bastante positiva e calorosa. Ainda sobre este projeto, de referir que acabámos de gravar um disco, e que o mesmo será lançado no dia 1 de fevereiro de 2024, com um concerto no CCB – Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Este projeto é composto por Carlos Martins Ensemble (Carlos Martins, saxofone e composição); Manuel Linhares (voz); Mário Delgado (guitarra); Carlos Barreto (contrabaixo); Alexandre Frazão (bateria); João Bernardo (piano); Joana Guerra (violoncelo); Paulo Bernardino (clarinete baixo) e com as vozes de Hugo Bentes, Pedro Calado, Carlos Franco Nobre, Francisco Bentes, Luís Aleixo, Moisés Moura, Luís Soares e Francisco Pestana. Sobre este desafio/trabalho considero um privilégio e uma honra poder trabalhar com músicos, que, arriscarei dizer, serão a nata do jazz em Portugal, e, depois, ter a sorte de juntar estes cantadores, que têm um enorme sentido musical e que vivem o cante com toda a sua alma e essência.

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