Diário do Alentejo

“Acho que filmar ou escrever o Alentejo é estar em casa e isso dá-me tranquilidade e conforto”

13 de novembro 2023 - 10:10
Foto| Patrícia AndradeFoto| Patrícia Andrade

Texto Luís Miguel Ricardo

Nasceu em Setúbal, no ano de 1972, mas foi por terras de Sines que viveu até aos 27 anos. A partir do ano 2000 instalou-se na capital, onde começou a trabalhar como argumentista de cinema. Onze anos depois assinou a sua primeira longa-metragem, “Quinze Pontos na Alma”, e, no ano seguinte, realizou “Florbela”, um filme distinguido com mais de uma dezena de prémios, entre nacionais e internacionais.

“Al Berto” e “Amadeo” são os outros títulos que completam a trilogia cinematográfica em torno de artistas sublimes e controversos da história da literatura contemporânea.Para além destes trabalhos, e de muitos outros distinguidos pela crítica nacional e internacional no universo da sétima arte, a literatura também é uma presença assídua nos seus trilhos artísticos, brindando-nos, até à data, com três romances publicados, o último deles – Que a Vida Nos Oiça – editado e lançado em 2023. Eis Vicente Alves do Ó na primeira pessoa! Quando e como aconteceu o “chamamento” para o universo artístico?Aos 10 anos, em 1982, vi o filme “E.T. – O extraterrestre”, que me deslumbrou ao ponto de acreditar que o cinema podia realizar tudo o que quiséssemos, e os livros de veterinária do meu avô que me deram a decifração do mundo através das letras. Lembro-me de dizer à minha mãe que adorava ser cavalo, que quando crescesse queria ser cavalo para correr pelas searas. Ou seja, aqui começava a efabulação. Como diz a Clarice Lispector: as crianças têm a fantasia.

Que memórias tem da proximidade com Al Berto?O Al Berto sempre foi uma presença muito constante na cidade de Sines enquanto cresci, pelo que, aos 18 anos, quando escrevo o meu primeiro texto e decido transformá-lo em peça de teatro, ele estava lá para me ouvir e dar a sua opinião. Trabalhei com ele no Centro Cultural Emmerico Nunes e foi uma das pessoas mais livres e sem preconceitos que conheci na vida. Fazer um filme sobre ele era um imperativo. Não podia passar por aquela história do palácio, do amor, da liberdade, do preconceito e não fazer nada. Tinha de contar aquela história, antes que ele se perdesse.  Literatura, teatro e cinema, três amores que se complementam? São três amores que se conciliam sempre numa ideia. Ou seja, não é a vontade de fazer um filme, um livro ou uma peça que me faz pensar nas ideias, mas o contrário. São as ideias que vou tendo que encontram um caminho que depois eu sujeito à prática que implica cada uma das artes. Nem todas as ideias dão para tudo, mas há outras que se servem de todas as artes. No meu caso, o que me preocupa sempre primeiro é a ideia. É aí que perco mais tempo. Mais vida.  Dos vários trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira de cineasta, há algum, ou alguns, que queira destacar?Talvez o filme “Florbela”. Era uma tarefa hercúlea. A personagem vinha cheia de clichés e más interpretações, mitos, escândalos, ideias feitas. É uma mulher muito controversa, cheia de nuances, e colocar isso tudo num filme sem cair na velha máxima de “vender” aquilo que já se sabe, ou pensa que se sabe, foi muito tentador e difícil.  Como é preparar uma produção cinematográfica?Começando pelo fim, acho que a maior alegria é a estreia do filme. Vê-lo finalmente como o sonhei ou muito perto disso. Mas, antes, talvez quatro ou cinco anos antes, começa todo um processo lento e frustrante, porque o cinema é a arte do tempo e da frustração: é tudo muito devagar e nunca há dinheiro para fazer exatamente como sonhamos. Por isso, começamos sempre por ter uma ideia, escrevê-la em forma de argumento de cinema, procurar um produtor, procurar financiamento, e, só depois, a coisa começa a ser palpável e a ganhar realidade. Até aqui é sempre um projeto, um sonho, uma ideia. Quando temos dinheiro, começamos a angariar equipa artística e técnica, a fazer castings e a escolher atores, a definir datas e tempos de rodagem e a trabalhar com as equipas dos vários setores sobre todas as necessidades, para que a rodagem seja tranquila e não nos falte nada. Mudamos o argumento muitas vezes por falta de dinheiro, ensaiamos muito com atores, escolhemos décors, guarda-roupa, cabelos, maquilhagem, analisamos ideias de filmagem, materiais, cores, planos, planificando tudo com o diretor de fotografia e assistente de realização, e, só depois, temos, em média, seis semanas de rodagem. Pós-rodagem, entramos noutra fase com outra equipa que vem montar, sonorizar, musicar, colorir, limpar, enfim, trabalhar o material filmado e transformá-lo num filme. É todo um processo moroso, mas recompensador.  Encontra pontos de convergência entre a preparação de uma produção cinematográfica e a preparação de um romance?Não. São processos muito diferentes. Escrever um romance é um ato muito solitário, preparar um filme é um trabalho de equipa. Escrever um romance é viver muito tempo em silêncio, preparar um filme é ter sempre resposta para todas as dúvidas, ensaios, procurar décors, decidir guarda-roupa, discutir ideias de imagem, cor, enquadramento. É todo um pensamento constante transformado em ação. O livro é um outro espaço que pode ser diminuto, que apenas vive no labirinto da nossa cabeça, que poucas vezes questiona porque a ideia precisa de se libertar na escrita, antes mesmo de criar as primeiras dúvidas. O cinema precisa de certezas mais convincentes no processo de filmagem, a escrita permite a dúvida. São duas artes muito diferentes, mesmo quando recorrem à palavra, mas a palavra tem um efeito muito díspar.  Que a Vida Nos Oiça. Que romance é este? É um romance que nasce de uma ideia que anda comigo há muitos anos: a ideia da memória que fazemos de nós e que muitas vezes nos define e que pode ainda assim ser tão frágil e mudar de um dia para o outro. Socorri-me da minha biografia, do meu Alentejo, da doença de Alzheimer, para falar nessa ideia de perder a memória, sempre a memória e o passado, a única certeza que temos num tempo cada vez mais vertiginoso sem futuro à vista. O romance conta a história de um realizador de cinema que recebe uma triste notícia: a mãe está doente com Alzheimer, coisa que o assusta e apanha desprevenido. Temos sempre aquela velha ideia de que os nossos pais vivem para sempre, até ao momento em que não. Este realizador, Vasco, decide fazer um filme sobre a vida da mãe, como se assim pudesse resgatar a sua vida do esquecimento que a doença lhe trará. Mas para isso precisa de reconstruir a sua história de vida e no processo descobre outra realidade que desconhecia. Mãe e filho veem-se assim na mesma situação: perder uma memória para refazer outra nova. Ou preferir o esquecimento?  O Alentejo costuma morar nas suas criações artísticas?Os três livros passam-se no Alentejo, os filmes, pelo menos três, filmei no Alentejo. Acho que filmar ou escrever o Alentejo é estar em casa e isso dá-me tranquilidade e conforto. Gosto de escrever e filmar os meus, aquilo que me diz respeito, que é tão único e que merece esse espaço da efabulação artística, seja no cinema ou na literatura.  Que ligações são mantidas com o Alentejo?Foi preciso sair de Sines para passar a ser muito mais alentejano do que era. Acho que dizer isto diz tudo.  Qual a opinião sobre o estado das suas artes, literatura e cinema, em Portugal?Os portugueses têm uma relação difícil e displicente com as coisas da cultura. Sempre foi assim, penso que sempre será. Não somos um povo dado ao pensamento, ao questionamento, ao rasgo público, à elevação espiritual. O Estado (monárquico e republicano) nunca fez questão de elevar a população e a própria população raramente se relaciona. O meio cultural despreza o meio popular, o meio político teme o meio artístico, a academia vive de uma arrogância bacoca e cheia de palavrões caros que mantêm ou dão estatuto social. E o poema, o poema como respiração de vida, é sempre visto como uma coisa exótica, engraçada, para malucos e sensíveis. Portanto, acho que as artes serão sempre o filho bastardo de um país que continua preso à sua fé, aos seus medos, à sua irresponsabilidade, no colo da mãe.  Como escritor e argumentista, qual o seu posicionamento face ao novo acordo ortográfico?Continuo a escrever como sempre escrevi. Acho que a língua evolui, muda, cresce, diminui, ganha e perde, é um ser vivo. Não me incomoda, mas também não faço questão de acompanhar um tempo e uma mudança que já não reflete aquilo que aprendi a conhecer. Se aceitar essa mudança na minha escrita, estarei diante doutras palavras que já não são as minhas. Nesse sentido, as palavras são como as pessoas da nossa vida. Que sonhos artísticos moram em Vicente Alves do Ó?Acho que mais do que sonhos, moram ideias e projetos que só precisam de tempo e dinheiro para serem concretizados. Gostava de viver 150 anos. Coisa simples, portanto!  O que está na manga?Estrear o próximo filme, em 2024, “Malcriado”, e acabar de escrever o próximo romance para 2025. O resto é viver a vida o melhor possível.

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