Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: A sede do vinho que errou

12 de junho 2020 - 11:00

Nestes forçosamente duros tempos de pandemia, em que subitamente mergulhámos, ficámos confinados a uma realidade para a qual não estávamos minimamente preparados. Uma realidade sustentada no caos, onde emergem os medos e as aflições e à nossa frente se anteparam os caminhos de um futuro incerto. É como se vivêssemos num pêndulo que oscila entre o melhor e o pior de nós.

 

Se há algo verdadeiramente positivo que esta crise nos tem mostrado, é a paixão que a nossa mais que auto-flagelada espécie afinal tem por isto de viver... é que no meio da impreparação geral, lá se garantem as mínimas condições de decente sobrevivência e se coloca o pragmatismus vitae acima de todo o supérfluo.

 

Existe no ser humano, uma sede e uma fome de vida, de verdade e de sentido. Esta crise propõe um encontro com a própria existência, da qual nos fomos afastando progressivamente por estarmos presos nas amarras da rotina e prisioneiros do quotidiano. A crise vem recentrar-nos e a pandemia surge como a cortina que destapa a realidade e abre o caminho ao genuíno sentido do ser: “...a porta da minha casa é a filha menor da porta do céu” (Yehuda Amichai). É como a luz que surge quando parece termos perdido a visão; ou alguém que está perdido e escuta o som de certos versos que o levam ao caminho certo. É a poesia que surge a partir do ruído.

 

As crises surgem como verdadeiras oportunidades para se reinvestir criativamente nas nossas vidas, e no sentido da nossa identidade.

 

Tal como o mito de Sísifo, que ilustra perfeitamente o quotidiano da maioria das pessoas, condenadas ao mesmo trabalho inútil e sem esperança: quatro horas no escritório, refeição, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado, sempre no mesmo ritmo.

 

Destes tempos incertos surge  a esperança, como um incentivo à transcendência que o homem deve alcançar na busca pelo sentido da existência. Nesta ótica, o caos não pode significar a crise no lamento de uma oportunidade perdida; pelo contrário é o significado encontrado na geração de alternativas. Caos e ordem são dinâmicas vitais de sobrevivência e de biodiversidade.

 

Um bom exemplo que ilustra esta realidade, é o vinho. E se pensarmos que alguns dos melhores vinhos são aqueles que nascem dos erros, das avarias, dos lapsos, dos esquecimentos ou contas mal feitas? E que, para cúmulo, acabam nas prateleiras dos rótulos mais caros? A verdade é que idiossincraticamente se tornam vinhos únicos, repletos de caráter, irreverentes, que fogem das convenções, da chatice do politicamente correto, abrindo um novo capítulo na história do nosso paladar.

 

Assim, para encontrar o caminho certo, o melhor a fazer é beber um vinho que errou, como nos ensina Horácio in Odes: “Sê sábia, bebe o vinho e encerra neste breve momento a tua longa esperança”.

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