Diário do Alentejo

Um hino à resiliência

30 de dezembro 2023 - 08:00
Ana Ângelo faz o rescaldo da sua participação no Ultra Trail Algarviana
Foto| Rui RodriguesFoto| Rui Rodrigues

A atleta Ana Ângelo (Barrancos/ /Biogado) foi a 25.ª classificada da geral individual e quinta entre as 10 mulheres que concluíram a última edição da Algarviana Ultra Trail (ALUT), uma prova desportiva que se inicia em Alcoutim e termina na Fortaleza do Beliche, no Cabo de São Vicente.

 

TEXTO FIRMINO PAIXÃO

Uma super aventura. Uma super mulher. 67 horas, nove minutos e 16 segundos, foi o tempo que Ana Ângelo, professora de Ciências da escola Mário Beirão, na cidade de Beja, gastou para cumprir os 320 quilómetros que percorreu para fazer a ligação do sotavento ao barlavento algarvio, a Via Algarviana. Uma grande rota pedestre que se inicia em Alcoutim e vai em direção às Furnazinhas, Balurcos, Vaqueiros, Cachopo, Barranco do Velho, Salir, Alte, Messines, Silves, Monchique, Marmelete, Bensafrim, Barão de São João e Vila do Bispo, terminando no Cabo de São Vicente, em Sagres. São as chamadas “bases vida”, entre as quais os atletas correm em regime semiautónomo.

Partiram 92 atletas, 80 homens e 12 mulheres, e 40 (entre eles duas mulheres) ficaram pelo caminho. “Este foi, talvez, o meu maior desafio deste ano”, confessou a atleta, recordando: “Inscrevi-me muito cedo nesta prova. Foi o primeiro dorsal (600) da época a ser atribuído. Quando me inscrevi, sabia o que queria fazer, mas não tinha muito bem a consciência de onde me iria meter. Foi a primeira prova de maior distância que fiz, já tinha estado nos 110 quilómetros do Trail de São Mamede, tinha feito também o Trail da Serra da Freita e outras ultramaratonas aqui na região sul do País”.

Mas era um desafio que estava nos planos de Ana Ângelo. “A Algarviana é sempre aquela prova que a gente procura. Abrimos uma rede social, um fórum ou uma revista da especialidade e lá está a Algarviana. Também sabia que alguns amigos a tinham tentado fazer, mas inscrevi-me sem ter relatos de ninguém. Andei um tempo ali a gerir aquela emoção, sempre na tentativa de me preparar bem para a prova”. E não foi coisa pouca: mais de 300 quilómetros entre Alcoutim e Sagres. “Sabia que era das maiores provas em Portugal. E, em determinada altura, percebi que não seria capaz de me preparar adequadamente, não conseguiria fazer aquele volume de quilómetros que me tinham aconselhado fazer, e à medida que o tempo ia passando o receio ia aumentando”. Por outro lado, a par da preparação física, é preciso preparar a componente psicológica. “As mulheres têm de facto muita força e a cabeça é que manda no corpo”, observa a docente. “Eu não sou uma atleta, faço isto por paixão, porque gosto, e agora já assumi este desafio para comigo mesma e para com a minha saúde. Já preciso mesmo de correr. Nunca me preparo como os atletas profissionais, não faço aquele volume de treinos, o meu treino é autodidata, faço o que gosto de fazer, correndo com os meus amigos. Não me preparei minimamente para esta prova, mas mentalmente estava cheia de força”. E insiste: “As mulheres são muito resilientes e repare que eu vi as mulheres serem muito persistentes e bem-sucedidas na Algarviana. Apenas desistiram duas e foi por lesões, as outras iam com a fibra toda. As mulheres são muito fortes”.

Mas, afinal, o que faz correr esta mulher? Um desafio à sua própria capacidade? “É sempre um desafio à superação. Esquecer as dores, esquecer as bolhas, as feridas. Há muita gente que não percebe isso e critica. Questionam-me o porquê de tantos quilómetros. Perguntam-me o que quero eu provar. Mas eu não quero, nem tenho que provar nada a ninguém. Fi-lo para me superar e em todo o caminho fui com uma ideia muito concreta na minha cabeça, que é acreditar piamente que o desporto é a cura de muita coisa, seja em que contexto for. Tenho o meu pai com [a doença de] Parkinson, dependente, a minha mãe faleceu, e a corrida tem-me aberto portas, criado laços e amizades. Tem-me ajudado muito a libertar a minha mente”. Sempre foram quase 70 horas de corrida. Um tempo em que muitas estórias terão ocorrido. Ana Ângelo concordou. “Foi muito engraçado, eu não conhecia a maioria dos concorrentes. Sei que eram atletas de renome, mas eu não os conhecia. Mas por uma questão de sintonia de ritmo, acabamos por nos juntar a uma ou outra pessoa e depois criam-se grupos de dois ou três. Entrava a noite e não gostava de ir sozinha. Ao meu lado ia um senhor com quem eu fui a falar durante mais de três horas e ele em momento algum me respondeu, nem uma palavra. Percebi, depois, que era espanhol e não me entendia. No final é que me disse: ‘Mira, yo no te entiendo, hablas mui rápido’. Já eu tinha feito um monólogo de três horas”.

Afinal, são experiências que enriquecem, que fazem crescer os concorrentes, quer como atletas, quer como pessoas. “Quando estamos no meio de um desafio desta dimensão, há valores que acabam por superar outros”, faz notar Ana Ângelo. “O meu objetivo era estar ali com aquelas pessoas, irmos até ao fim e celebrarmos, porque todos partilhamos do mesmo sentimento. Quando lhe disse que o desporto cura, também lhe digo que o desporto une pessoas que, muitas vezes, têm estórias de vida completamente diferentes, mas que têm aquele ponto em comum. Por isso, acredito que fiquei muito mais rica em vários aspetos, para além da superação e de acreditar que conseguirei fazer outra vez, se for necessário. O que passei, durante aquelas horas, trouxe-me vivências para o meu dia a dia, fazendo-me perceber que existem problemas muito fúteis aos quais damos demasiada importância e que, noutro contexto, somos capazes de superar mais facilmente”.

Superou-se, cresceu, valorizou-se, porém, fica a dúvida: Ana Ângelo voltaria à Algarviana? “Bom, a Algarviana está feita! Fica uma porta aberta para alguém que queira que eu lá esteja para ajudar. É uma prova que precisa de muitos voluntários. Mas tenho outros desafios, por exemplo, a Ultramaratona PT 281km, entre Belmonte e Proença-a-Nova, outra prova muito conhecida, na mesma ordem de quilómetros. Depois tenho outras provas de 100 quilómetros onde quero estar, mas tenho de ‘ouvir’ o corpo, e repousar um bocadinho antes de voltar a vestir a camisola do Barrancos. É sempre um grande orgulho representar aquela vila, é a terra dos meus pais, adoro vestir aquela camisola, não tem descrição”.

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