Diário do Alentejo

António Aiveca: Memórias

10 de dezembro 2021 - 16:20

Sim, memórias, porque recordar é viver. As memórias são uma reposição de vivências, de sentimentos, de emoções, mas também a revisitação de factos e de páginas que os dias, os meses e os anos, enfim, este tempo por onde amadurecemos, permitem desfolhar, num ritual que só os verdadeiros protagonistas possuem a mestria de ordenar em desfile.

 

Texto Firmino Paixão

 

Assim exista quem as saiba ouvir. Ouvimos, gostamos de o fazer, muitas recordações de momentos vividos há décadas atrás, pelo protagonista desta nossa história. Sempre cordial e amistoso, notava-se-lhe a ânsia de connosco reviver esses momentos, mas pessoalmente. As conversas que trocámos, por vias alternativas, abriam sempre uma janela de oportunidade para que um dia o encontro, também o conhecimento recíproco, pudesse acontecer. E aconteceu!

 

Foi assim numa destas tardes frias, mas solarengas, que o outono nos proporciona, e as palavras saíram em catadupa, como se há muito nos conhecêssemos, mas também as provas documentais de tudo o que ia sendo revelado, as imagens do passado, os diplomas, os cartões, os recortes de imprensa. E aquele brilhozinho nos olhos…. O alentejano é assim, sentimental, amistoso, confiante no amigo a quem escancara o coração.

 

António Aiveca nasceu em Penedo Gordo, uma aldeia da freguesia urbana de Santigo Maior, no dia 18 de setembro de 1938. Tem 73 anos e um manancial de estórias para contar. Teve uma infância normal, como qualquer moço da época, mas sempre com o sentido no ciclismo, uma modalidade muito acarinhada na sua terra natal, onde sobressaíam, além dele, outros vultos que deixaram marcas nas corridas de bicicletas.

 

Conta o António Aiveca: “Fiz a escola aqui até aos 11 anos, tinha uma professora que morava em Beja, era a D. Maria da Conceição Moura. Ela vinha de manhã e à tarde íamos levá-la. Todos os dias eram nomeados dois alunos para irem a pé acompanhar a senhora até Beja”. No inverno, claro, quando regressavam à aldeia já tinha caído a noite, mas como eram dois, medo, nem vê-lo.

 

Sobre a vida académica (o que era isso naqueles tempos?) revelou: “Fiz o exame da quarta classe aos 11 anos e aos 13 fui logo trabalhar com o meu pai. Ele era pedreiro em Beja e levou-me para eu aprender o ofício”. Claro, isso era a fruta da época. Mas o ciclismo estava sempre presente. “Nessa altura, o Ilídio do Rosário, que era mecânico em Beja, vinha de Santa Vitória e juntávamo-nos todos. Quando saíamos íamos treinar, dávamos a volta por Ferreira do Alentejo”. A primeira bicicleta que possuiu foi comprada na Casa António Janeiro. “O meu pai comprou-a a prestações e comecei a correr. Ganhei logo umas seis ou sete provas, e quando fui para a Baixa da Banheira, um dia, o meu pai mandou-me um recado - ‘Olha filho, já paguei a última prestação da tua bicicleta”, recorda.

 

Como muitos jovens dessa altura, deixou o Alentejo e foi para a Baixa da Banheira. Tinha 18 anos e trabalho garantido por um tio que já lá a residia. Deixou a sua terra natal, onde havia um grande entusiasmo com as bicicletas. “Esse foi o motivo pelo qual comecei, tão cedo, a andar de bicicleta. Tinha aqui uma prima que foi deputada pelo Bloco de Esquerda, que é a Mariana Aiveca, filha de um primo meu que também correu com o Adegas, o José João e o Contente, de Ferreira do Alentejo, o Manuel de Azevedo, que correu no Benfica, morava em Beja, mas era de Beringel. Ele é que era o meu treinador. Andávamos a fazer o quartel de Beja e quando saíamos do trabalho ele dizia ao meu pai - ‘mestre Tóino’, eu vou treinar o moço… então dávamos a volta por Ferreira”.

 

A Casa do Povo de Penedo Gordo foi, com toda a naturalidade, o seu primeiro clube. Já na Baixa da Banheira, núcleo urbano que na altura estava em grande crescimento, representou o recém-constituído Ginásio Atlético Clube. Tinha ganhado uma prova de populares e ficaram de olho nele, mas há mais: “Também recebi uma carta do Sporting a convidar-me, ainda falei com os diretores do Ginásio que me convenceram a não ir porque, na época, havia muita falta de trabalho e eles prometerem-se um emprego na CUF. Nem uma coisa nem outra. Gostava de ter experimentado o Sporting”.

 

Muitas corridas, muitos pódios, muitas vitórias e participação em grandes provas. “Corri em três voltas a Portugal mas, infelizmente, não completei nenhuma. Na primeira, uma etapa entre Tavira e Évora, com 256 quilómetros, correu-me lindamente, fui dos primeiros a passar por Beja, estava a minha mulher grávida da minha filha Anabela [hoje uma conceituada artista plástica], passávamos pelo Penedo Gordo e, nas vésperas, eu tinha pedido à minha mulher, Natália, para ir para a estrada com um cântaro de água fresca para eu me abastecer. A cinco quilómetros do Penedo, no Ramal do Cigano, estava um rapaz aqui da terra que me encheu o cantil e quando passei por aqui já não era preciso e ela, coitada, ali ficou com o cântaro cheio, porque eu já nem parei. Mas estava ali o povo todo da aldeia”.

 

Terminou a carreira aos 25 anos, cheio de recordações. “Corri com grandes ciclistas, na época, o treinador do Benfica era o Alves Barbosa, na primeira Volta em que corri venceu o José Pacheco, do FC Porto. Andavam lá o Sousa Cardoso, o Sousa Santos, o Lima Fernandes, o Jorge Corvo e o Sérgio Páscoa”, entre outros, naturalmente.

 

Em 1952, surgiu aquela primeira Volta ao Alentejo, de que fala o professor grandolense Cândido Matos Gago, na sua obra “O Ciclismo no Alentejo”, uma corrida com percursos, apenas, no Baixo Alentejo e Alentejo Litoral. “Foi uma volta organizada pelo Joaquim António Neves” – lembra António Aiveca – “chamávamos-lhe o ‘Joaquim da Cuba’, era sapateiro, tinha uma oficina com vários operários e era o presidente da Casa do Povo e o diretor do ciclismo. O homem desenvolveu a secção de uma forma fantástica, gostava mesmo de ciclismo e gastava dinheiro com ele. Foi assim que nasceu a ideia de uma Volta pelo Alentejo. Vieram cá grandes ciclistas profissionais, lembro-me do Manuel Graça, do Sporting, do Artur Carreiras, do José Firmino, do Benfica, éramos moços, mas queríamos era correr com os profissionais. Era uma loucura...”

 

Sobre a atual Volta ao Alentejo, por todo o Alentejo, que deu as primeiras pedaladas em 29 de junho de 1983, Aiveca comentou: “Acompanho sempre à distância, claro. Mas sabe? Eu depois de deixar de correr estive na origem da Associação de Ciclismo de Setúbal. Eu e o meu irmão, que foi diretor de várias corridas, e criámos também um corpo de juízes e cronometristas. Então, comecei a acompanhar o Grande Prémio da Costa Azul, fui até nomeado treinador da seleção de ciclismo de Setúbal, e estive ligado ao ciclismo até há muito pouco tempo, mas é uma coisa que ainda tenho cá bem dentro de mim”.

 

Nas suas memórias velocipédicas, António Aiveca tem presente os nomes de outros ciclistas do Penedo Gordo que participaram em grandes provas nacionais, como António Bernardo Jerónimo e Manuel Pratas. “Foram à Volta no tempo do Nicolau e do Joaquim Fernandes, correram pelo Sport Lisboa e Beja e, mais tarde, andámos todos representando este distrito, com as camisolas negras do Ateneu Comercial de Beja”. Na hora de entrar na sua terra natal, após uma ausência de mais de uma década, regressou-lhe o tal brilhozinho nos olhos: “É sempre uma grande alegria. Já tenho cá poucas pessoas da minha geração, ainda estão por aí um ou dois que foram ciclistas, mas era só naquelas provas domingueiras de um dia”.

 

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