Diário do Alentejo

Filipe Câmpelo: "A opção de vir para Beja pareceu-me natural"

26 de agosto 2020 - 17:00

“Sou muito adepto da filosofia anglo-saxã de intervenção cidadã. Acho que todos devemos deixar o mundo um pouco melhor do que o encontrámos, como postulava Baden-Powell, todos devemos melhorar a nossa rua, o nosso bairro, a nossa cidade, sem esperar e reclamar com os ‘outros que não fizeram’. E acho que a melhor maneira é partilhar essa noção com os mais novos, pelo exemplo, de modo a que eles próprios sejam o exemplo a seguir mais tarde nas suas vidas, num ciclo virtuoso de serviço ao próximo”.

 

Texto Firmino Paixão

 

Que lição de vida! Que legados nos vão deixando pessoas fantásticas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, e que nem sempre deixam vir à flor da pele os valores e os ideais que as tornam em exemplos tão sublimes. O comandante Filipe Campêlo nasceu em Lisboa há 51 anos, filho de um pai com “pronúncia do norte” e de uma mãe lisboeta e irrequieta, também com ligações ao norte do País, região “onde havia uma maravilhosa quinta dos avós de onde saíamos de manhã, por montes e vales, e voltávamos quando nos dava a fome”, recorda Filipe Campêlo, sublinhando que “foram tempos muito felizes”, com longas estadias na quinta, acompanhando o avô na faina de pequeno agricultor.

 

Desse tempo vem também a memória das férias de praia, em Santa Cruz, a escola primária, onde criou a sua mais antiga amizade, “ainda hoje assídua”, bem como “as brincadeiras, a escola preparatória que ficava no meio de nenhures, com um ribeiro nas traseiras e um denso pinhal do outro lado, os escoteiros que me aparecem à frente, nessa altura, pela mão de um colega e vizinho e que tanto me definiram como pessoa”.

Sobre o percurso académico, confessa o comandante (já lá iremos) que correu sem percalços de maior: “Tive a fortuna (pelo menos à luz das pedagogias da altura) de ter a mãe em casa até à primária, que correu sem sobressaltos, onde tive uma daquelas extraordinárias professoras de que ainda hoje recordamos o nome, a cara e o tom de voz. E a reguada. Mas foi só uma. E provavelmente merecida…”

 

Veio o secundário, depois o preparatório, as ciências, a tecnologia e as vivências com as raparigas das humanísticas. “Estava fadado para a eletrónica e eletrotécnica, mas o ‘bichinho’ nascido nas férias de infância na praia de Santa Cruz e uma gigantesca dose de coincidência (dizem que isso não existe...) ditou que um colega de turma aparecesse um dia com uns folhetos da Força Aérea Portuguesa (FAP) para candidatos a piloto. Encontrei-o uns anos mais tarde a bordo de um avião da TAP. Eu era o comandante. Ele era engenheiro eletrotécnico”.

 

Era o tal ‘bichinho’ da praia de Santa Cruz que frequentou uns dois ou três verões seguidos. “Numa ocasião, ainda nem teria seis anos, houve um festival aéreo no aeródromo, que ainda hoje tem o nome da localidade (Santa Cruz/Torres Vedras). Lembro-me de uma exibição dos saudosos Asas de Portugal, da descolagem de um helicóptero a escassa distância, suficiente para abanar significativamente o carro onde estávamos. Por muito que eu implorasse, os pais não me deixaram ter direito ao batismo de voo”.

 

Mas a vontade de voar, como descobriria nos tempos de liceu, tinha ficado. “Isso é para super-homens!, foi a frase que mais ouvi no meu grupo de amigos, quando anunciei a minha candidatura a piloto da Força Aérea. Dei-lhes sempre a mesma resposta: - só vou saber se tentar. Um princípio que me tem orientado pela vida fora com muito bons resultados. E umas cicatrizes na pele”.

 

Filipe Campêlo entrou como piloto miliciano na FAP em 1987, onde fez o curso em DHC-1 Chipmunk, que qualifica como “uma deliciosa máquina do pós-II Guerra Mundial”, e no Cessna T-37, onde diz ter tido “a honra e felicidade de ser aluno dos Asas de Portugal de então”. Após uma curta passagem pela escola de aviação Aerocondor, como instrutor de voo, entrou na TAP Air Portugal em 1998, onde permanece até hoje e sob cuja bandeira voa para muitos cantos do mundo.

 

Mas, entretanto radicou-se em Beja, no coração da planície… “Olhe, a Biblioteca de Beja tinha sido, recentemente, nomeada como a melhor biblioteca municipal do País, por um jornal nacional. Quando precisei de um passaporte para o meu filho mais velho (então com cerca de três anos) passei do mês e meio de espera pela emissão do mesmo, para um ‘se estiver aqui às nove horas, damos-lhe o passaporte depois do almoço’. Não foi bem assim, foi melhor. Literalmente a meio do pequeno-almoço, a funcionária ligou-me para o telemóvel (ainda era uma razoável novidade na altura) a informar que o passaporte estava pronto. A atenção por parte da funcionária tocou-me. Depois, com o nascimento do segundo filho o apartamento de Lisboa ficou curto. A opção de sair de Lisboa pareceu-me natural e ainda mais natural a opção por Beja. As pessoas são simpáticas e as coisas funcionam. O resto foi mais uma sequência de coincidências alinhadas. Daquelas que se diz não existirem”.

 

Uma vez em Beja, criou e assumiu outro comando: o Grupo 234 dos Escoteiros de Portugal. Ajudar o próximo está-lhe na “massa do sangue”. É a sua missão de cidadania, perante a sociedade? “Sabe, tudo nasce quando, como qualquer outro pai, me preocupei com que ‘tribo’ os meus filhos se iriam identificar nas idades críticas da adolescência. E também porque procurava algo que eu pudesse partilhar com eles e com o qual me identificasse. Resgatei os meus tempos de escoteiro na juventude e achei que fazia sentido para os meus filhos. Como não havia nenhum grupo de escoteiros em Beja e porque não sou do género de ficar sentado a dizer mal porque os outros não fizeram, pus mãos à obra e com um grupo de outras pessoas dinâmicas e dedicadas fundámos o Grupo 234”.

 

Mas, afinal, o que o faz correr por esses montes e vales do Alentejo? “Parafraseando George Mallory, ‘porque estão lá’. A corrida de ‘trail’ conjuga duas coisas de que gosto muito, a corrida em si e o andar no mato”. Feliz e sem arrependimentos por este percurso está pronto para novos desafios, nem que seja para cumprir um outro sonho: “Ser astronauta”.

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